Gilmar de Carvalho – Patativa na casa dos cem
''Como fugir de artifícios dos eventos?''. O pesquisador e professor do departamento de comunicação, Gilmar de Carvalho, formula a pergunta e propõe caminhos para fazer do centenário de Patativa do Assaré, que completaria 99 anos ontem, uma data para e
Publicado 06/03/2008 11:21 | Editado 04/03/2020 16:36
Poucos viveram com tanta intensidade o século XX como Antonio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré. Ele esteve presente aos principais acontecimentos da vida do país, não como testemunha, mas, como ator social.
De sua idílica Serra de Santana, fez ecoar seu canto e interferiu na cena brasileira, com a força de uma voz poética e profética.
Tornou-se referência. Ocupou espaços na mídia impressa e eletrônica. Foi Doutor ''Honoris Causa'' de três Universidades. Sua poética foi estudada em dissertações e teses. Personagem de documentários e registros fotográficos, vários de seus poemas foram gravados em discos. Ocupou um lugar que construiu, com muita dignidade.
Quando começam os festejos do seu centenário, o que se pode fazer para que sua memória permaneça? Como fugir dos fogos de artifícios dos eventos?
Além da restauração do seu Memorial, desgastado pelo tempo e pela falta de manutenção; da reedição de seus livros; do relançamento de seus discos; dos filmes e documentários passados para ''dvd'' (ou ''blue-ray'') e das edições especiais de várias publicações, pode-se pensar em uma proposta que envolva educação, leitura e a iniciação de crianças e adolescentes ao seu universo poético.
O Memorial tem tudo para se tornar um centro vivo, atraindo jovens pesquisadores e fruidores, interessados em ouvir sua voz, ver suas imagens e ler seus poemas.
Esse projeto poderia ser feito a partir da parceria Prefeitura de Assaré / Seduc / Secult, sem deixar de lado instituições culturais, editoras, empresas de comunicação e organizações do terceiro setor.
Importante que a voz de Patativa continue a ecoar, superando as barreiras do tempo e os ardis do esquecimento. Um Patativa para crianças e jovens passa pela animação de Ítalo Benevides, pela escrita de Fabiano dos Santos e pelas ilustrações de Mariza Viana para os títulos da Fundação Demócrito Rocha.
Uma iniciativa importante seria a patrimonialização de sua obra. Isso implicaria a (re)compra, por parte do Governo do Estado, de seus títulos que estão em poder de editoras, objeto, muitas vezes, de disputas que não valorizam o poeta. Foram aquisições feitas, quase sempre, na ''bacia das almas'', na expectativa de valorização que viria a partir da morte ''anunciada'' do poeta (em 2002).
Patativa do Assaré não pode ser tratado como alguém fora do mercado, mas não pode ser vítima de especulações. Não deve ser visto como um autor museificado, mas com a reverência que sua voz de pássaro libertário recomenda.
Mostrar o poeta atraente para novos leitores e difundir sua obra sem entraves poderiam ser dois pilares para que o seu centenário ganhe a importância devida.
Precisamos de Patativa na rede de bibliotecas escolares, no programa dos Agentes de Leitura, como referência na próxima edição da Bienal do Livro e como alguém a ser permanentemente lembrado, de hoje a 5 de março de 2009 e daí para sempre.
Nunca será demais homenagear aquele que começou a cantar para seu povo e nunca se afastou dele, apesar dos holofotes, dos espaços privilegiados e da exposição pela mídia.
Daquele que nunca deixou de ser o ''cantor da mão grossa'', calejada pelo cabo da enxada, manejada na roça enquanto formulava o poema que ele ou outros passariam para o papel.
A dignidade de Patativa é algo que merece ser destacada, como justificativa das homenagens, em um tempo em que os valores éticos se esgarçam, as utopias se enfraquecem e a competitividade anula o projeto de uma sociedade solidária como ele propunha.
Patativa, poeta-cidadão, quase centenário, longe de ser descartado pela formulação de Brecht (lamentando o povo que tem necessidade de heróis), destaca-se pela grandeza, nesses tempos de construções efêmeras.
Precisamos de Patativa, mais que nunca. Ele nos faz pensar, nos deleita e nos propõe o lugar que devemos ocupar, de cidadãos. O estranhamento da poesia, como código estético, se associa a uma ética que chamaria de sertaneja, na reivindicação de uma Reforma Agrária de verdade, da relação amistosa com a natureza (da qual fazemos parte), da valorização de nossa memória e da construção de nosso projeto de futuro.
Gilmar de Carvalho é jornalista, pesquisador sobre a cultura popular e professor da UFCe