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Os estragos de 'Tropa de Elite' e o teatro de Zé Celso

Na rua Barão de Tefé, no bairro da Saúde, Rio de Janeiro, uma multidão se aglomera em frente ao Espaço Cultural Ação da Cidadania. De dentro, um grupo de homens vestindo o preto do agora famigerado uniforme do Bope sai em grande algaravia. Após uma cur

A montagem de Zé Celso foi duplamente bem-sucedida. Primeiro, pela excelente realização; segundo, por se inserir no debate em torno da realidade que parece bater à porta de todos. Ótimo o teatro não ficar de fora, principalmente em um momento em que o filme Tropa de Elite ganha adeptos, louros e apoio popular e de mídia.


 


Na cidade do Rio de Janeiro morrem mais jovens vítimas de armas de fogo do que no conflito Israel/Palestina (pesquisa do Iser entre 1987 e 2001). O Brasil é o terceiro país onde mais morrem jovens por armas de fogo (Unesco, pesquisa de 1979-2003). Ao lado de tudo isso, a constatação indefensável sobre o racismo do país: a discrepância entre o número de brancos e negros a cumprir a triste estatística (entre jovens negros, a taxa de homicídios é 74% maior, ver Unesco, Mapa da Violência IV).


 


Nesse cenário de guerra, quando a sociedade começava, timidamente, a discutir soluções alternativas, vemos um filme adquirir notoriedade ao dar um passo atrás, passando a mensagem de que não existe solução para o problema sem se combater a violência com a violência (nada de novo no front, essa é a política de segurança pública há pelo menos duas décadas, e a cidade vai, como não poderia deixar de ser, ficando sitiada).


 


Mais grave ainda: o filme faz coro com o que parece ser uma tendência mundial, desde as imagens sinistras de Guantánamo e de Abu Ghraib, de que a tortura é um recurso, se não justificável, pelo menos escusável, de conseguir sucesso nessa guerra. Ao lado de Tropa de Elite pode-se acrescentar uma cena de tortura em um carro, perpetrada por Denzel Washington, em Chamas da Vingança, contra um mexicano traficante e seqüestrador de uma menina americana loirinha e bonitinha.


 


Tivemos a “oportunidade” de assistir, recentemente, a Kiefer Sutherland, do enlatado 24 Horas, torturar um árabe, evidentemente, terrorista. Se é preto, pobre e mora mal, ou se é latino, árabe (como se sabe, normalmente “traficantes e terroristas”), pode ser torturado, afinal, os fins justificam os meios.


 


O mais preocupante é que em todas as “obras” mencionadas os torturadores não deixaram, hora nenhuma, de ser entornados pela auréola de heróis. Sim, os torturadores são os heróis, no sentido pleno, o de criar identificação. No mesmo sentido em que as criancinhas da Grécia antiga, ouvindo dos aedos as narrativas da Ilíada e da Odisséia, identificavam-se com as figuras de Ulisses e de Aquiles.


 


A violência não é o principal problema do mundo ou das cidades brasileiras. A pobreza o é. A violência é o problema secundário, derivado do primeiro, obviedade que não custa lembrar. A população pobre do Rio tem ojeriza ao Bope e a todos os seus símbolos. Num país com tanta criminalidade e racismo, um filme que idealiza uma polícia detestada pela população é, sim, sinal de fascistização da sociedade, não importa o quanto esperneiem os seus realizadores.


 


No ano de 1897, cerca de 10 mil ex-combatentes da Guerra de Canudos foram enviados ao Rio de Janeiro, a capital federal, seguindo a promessa de que receberiam casas em benefício aos anos de campanha. Devido ao não cumprimento da promessa, eles foram ocupando as encostas do morro da Providência, que terminou por se chamar morro da Favela, e se tornou também a primeira favela da cidade.


 


Zé Celso sabe o que faz. Ao associar sua peça sobre Canudos à tropa de elite, cava fundo o flagelo social brasileiro. A Matadeira, canhão Whitworth de 32 polegadas, tão descrita por Euclides da Cunha e tão surreal no meio da caatinga miserável, é igual ao Caveirão do Bope, o veículo blindado armado com uma metralhadora antitanque que invade barracos, as mais das vezes de madeira. Ambos são a representação material do ódio secular de uma elite pelo seu povo e a estratégia de botar pobre para matar pobre. Ambos despertam nesse povo os mesmos sentimentos: ódio e pânico.


 


Ao tecer essas felizes associações, Zé Celso lança mão de uma das possibilidades do que o teatro tem de melhor: a flexibilidade de dar respostas imediatas, no calor do momento em que os problemas são colocados. Basta de guerra aos pobres. Basta de guerra a Canudos. Os estragos de Tropa de Elite já foram feitos. E a sociedade que começava, timidamente, a discutir soluções…


 


* Paulo Frederico Telles é formado em letras pela UFRJ e mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Rio