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Brasa acesa do humor: os 15 anos das charges de Brás Rubson

Ele publica charges e cartuns há 15 anos no Centro-Oeste do Brasil. Viu trabalhos seus publicados em diferentes veículos – O Estado de Mato Grosso, Folha do Estado, Diário de Cuiabá e jornais do movimento popular. Agora, o melho

O poeta e jornalista Adalberto Monteiro, editor da revista Princípios e presidente da Fundação Maurício Grabois, assina o prefácio da coletânea. A exemplo de Adalberto, Brás Rubson é filiado ao PCdoB – e a associação entre as lutas do povo e seu trabalho artístico fica clara no texto abaixo.


 


Brasa acesa do humor


 


Por Adalberto Monteiro


 


Há muitas fontes para se conhecer a história de um povo e as marcas de um período histórico. A alegria, o humor, o riso, o deboche, a sátira fazem parte dessas fontes. Com a arma do riso – entre outros artefatos de seu arsenal – o povo constrói e destrói verdades, líderes e regimes. Não se decepa a maldade apenas com a espada. Desde Cervantes – e muito antes dele – sabe-se que a vida e seus combates exigem outras armas além das convencionais. O humor, por exemplo, pode ser escudo; e a alegria e a ironia podem cortar mais que navalhas.


 


Então, ver e ler No Bico, Sem Pena! Brás 15 anos de charges, de Brás Rubson, é percorrer pelos caminhos do riso e do humor fatos, situações, episódios, escândalos, confrontos dos diferentes âmbitos da existência, em especial da vida política e social ocorridos de 1991 a 2006, como diz o autor, “no Mato Grosso, no Brasil e no Mundo”.


 


A versatilidade de Brás permitiu-lhe dominar, praticamente, todas as manifestações do desenho artístico: a caricatura, o cartum, o desenho de humor, as ilustrações e a tira cômica. Com estes diferentes gêneros, ele “pintou” e enfrentou temáticas variadas. De tal modo que seu livro está dividido nas seguintes partes: Poder, Moeda, Natureza, Vivências, Ilustrações e caricaturas.


 


Joaquim da Fonseca sintetiza, de modo brilhante, a caricatura como “a imagem gráfica do humor”. E a ela atribui as dimensões de documento histórico: fonte de informação social e política, termômetro da opinião de uma época, fenômeno estético, expressão artística e literária e diversão.


 


O trabalho artístico-jornalístico de Brás abarca o conjunto dessas dimensões. E ao longo desses 15 anos ele foi forjando o seu estilo, chegando a vencer o desafio maior de todo cartunista: a singularidade de seu traço e o tom do estardalhaço de seu riso. Singularidade essa que permite ao leitor num lance de olhos saber qual bico de pena fez nascer o desenho.


 


Do ponto de vista estético queremos destacar o domínio do desenho de quem pinta desde menino e passou por uma Faculdade de Belas Artes: a serenidade, a leveza e a harmonia das cores. O seu traço é eficaz para deformar e, ao fazê-lo, torna-o eficaz para ser o fiel retrato e revelar as essências dos papéis de personagens e situações. (Brás se proclama autodidata; no que se encaixa, perfeitamente, conforme Paulo Caruso: a caricatura é “uma arte que não se aprende na escola”.)


 


A charge como fenômeno estético é a confluência das artes plásticas com o jornalismo. Não nos esqueçamos de que monstros sagrados da pintura – como Goya, Picasso, ou nosso Di Cavalcanti – nos legaram importante acervo de gravuras que são documentos das tragédias e dilemas do tempo em que viveram.


 


Mas, para além desse lado estético, o trabalho dos cartunistas é, segundo o estudioso citado acima, o termômetro político e social de uma época. A Manha, de Aparício Torelly, o Barão de Itararé, e o Pasquim, de Jaguar, Ziraldo & outros – para citar apenas dois exemplos – são imprescindíveis para se aferir o desenrolar da luta contra o Estado Novo e a Ditadura Militar, respectivamente.


 


Essa coletânea de charges, cartuns e das ilustrações de Brás abarca desde o início dos duros anos 1990 – quando a avalanche neoliberal se abateu sobre o país – até o início da disputa da sucessão presidencial de 2006. Nesta temática, sobretudo sem pena nem piedade o bico de sua pena, honra com excelência a tradição ferina da caricatura brasileira que tem como marco inicial a publicação de Lanterna Mágica (1844) de Manoel Araújo Porto-alegre.


 


Principalmente nas charges dos capítulos Poder, Moeda vê-se o traço cortante de Brás denunciando os crimes e mazelas de Collor e, sobretudo, de FHC. Aliás, se FHC tivesse força o bastante teria feito com Brás, e outros tantos cartunistas nossos, o que Mussolini fez com artistas de sua época: proibiu-os por lei de caricaturá-lo.


 


Como isso teria sido impraticável, mesmo sob aquela “ditadura do pensamento único neoliberal”, Brás mostra o longo nariz de Pinóquio de Collor. Tão comprido por tantas mentiras que a ponta do monstrengo pula para fora do aparelho de TV, espetando a turma da poltrona.


 


No conjunto de charges referentes aos dois governos de FHC, se vê, por exemplo, Fernando Henrique com um tabuleiro ladeado por um ambulante que também tem um tabuleiro pendurado no pescoço: o primeiro vende a Telebrás, a Eletrobrás e a Vale do Rio Doce e o segundo, bananas.


 


Assim como na literatura de humor não há um tipo único nacional, o mesmo ocorre com a caricatura. O riso não ocorre de modo pasteurizado em todo o país. Dessa maneira, no trabalho artístico de Brás pode-se conhecer o bom humor brasileiro com sotaque cuiabano. Numa charge de 98 sobre a inflação, dois dragões-fêmeos conversam. A que representa a inflação mais baixa pergunta à outra: o que você comeu minha filha? Votê,agora quando. Foi só Peticomatitt-responde a colega. Os temas de Mato Grosso comparecessem com a mesma desenvoltura de liberdade de criação que marca a temática nacional e internacional. Um buraco na estrada com o formato e o “tamanho” do mapa desse estado denuncia as péssimas condições das rodovias da época.


 


A charge, além da imagem, exige um sintético texto humorístico. Numa delas, ainda sobre Mato Grosso, há um outdoor com o mapa do estado e, no seu interior, está escrito em letras garrafais: Maior produtor de soja, maior produtor de algodão, maior exportador de energia, Nova Fronteira agrícola. Ao pé da propaganda, um personagem indaga a um desempregado: por que não se consegue emprego num estado desses?


 


A temática ecológica – pujante no Centro-Oeste – aparece com força na coletânea. Destaque-se a charge em que na paisagem resta apenas uma única árvore cercada de troncos ceifados por motoserra. No alto da imagem a legenda: Área de Proteção ambiental.
Vale dizer: a caricatura de Brás não é neutra, tem uma causa e uma perspectiva clara, como ele próprio diz, de “lutar por um mundo melhor”. E isso sem dúvida deriva de sua altivez profissional, além de uma boa dose de sagacidade e habilidade. Ele soube se impor e soube navegar nas correntezas das linhas editoriais dos jornais em que trabalhou. E, de fato, nunca deixou de dar o seu recado.


 


Desse modo, o conjunto da obra tem uma nítida linha política – progressista, humanista e ecológica – refratária ao neoliberalismo e aos partidos e personalidades políticas que o defendem. Todavia, a verve crítica não desaparece quando ele lida, por exemplo, com o governo Lula ao qual nutre explícita simpatia. Aparecem críticas à política de juros altos e a outros aspectos negativos do governo. A defesa é feita tendo como ponto de partida motivações justas. Por exemplo, a charge em que Lula aparece crucificado – como, realmente, o foi pela mídia – por ter usado o boné do MST (Movimento dos Sem-Terra).


 


Mas, não só de política vive o homem. Em Vivências, surge o futebol entre outros temas: um mapa do Brasil, vestido com a camisa da Seleção Brasileira, bípede e calçado com chuteiras. Uma alusão a Nelson Rodrigues, para quem “a seleção é a pátria de chuteiras”.


 


Entre outras pessoas, o livro é dedicado à “memória do grande brasileiro João Amazonas Pedroso”.


 


De dentro do Oeste profundo do nosso país, um artista observa o seu estado, o Brasil e o mundo. Seus colegas de redação redigem três, quatro laudas, depois de peregrinar pela cidade ou pelos despachos das agências. Eles precisam ser fiéis aos fatos e obedecer a manuais de redação. Brás tem diante de si uma folha nua. Com uma dúzia de traços e meia-duzia de palavras tem de captar pelo filtro do riso o fato pulsante da hora. Ao contrário de seus colegas, cabe-lhe deformar e exagerar; cabe-lhe desprezar os manuais e as regras, sobretudo as de “boas maneiras”. Ao fazê-lo diverte e esclarece. Não é apenas pela pena de Deus que a verdade aparece por linhas tortas…


 


As charges de Brás têm o dom de nos fazer sorrir, apesar das iniquidades. Porque o humor de Brás queima como a brasa e nos proporciona aquele riso bom que nos lava alma, pois debocha dos imperadores do mundo e enaltece a irreverência e a esperança dos oprimidos.


 


Veja abaixo charges publicadas no livro