No dia do mestre, ninguém lembra dele
Nesta quarta-feira (15) comemora-se o Dia do Mestre. Neste polêmico artigo, “Porque ninguém lembra do professor como gente?” o professor e jornalista José Eduardo Carneiro aborda as angústias do professores, seja em sala de aula ou fora dela.
Publicado 15/10/2008 20:28 | Editado 04/03/2020 17:05
Porque ninguém lembra do professor como gente?
Por José Eduardo Carneiro
Hoje estava lendo um daqueles cadernos da coordenação pedagógica que informam sobre normas, procedimentos, agendamentos, atividades extracurriculares e sobre possíveis problemas de alunos e familiares. Lembrou? Claro, se você for professor de fato lembrou na hora. São de capas pretas e vêm sempre com um papel colado com espaço para o professor assinar deixando claro ter ciência do assunto em questão. Pois bem; de repente me vi hipnotizado por essa leitura dignificante e extremamente esclarecedora. O texto pedia para que nós, professores olhássemos com atenção para uma aluna que estava em tratamento por problemas na vesícula e que, além disso, o pai estava passando por dificuldades.
O texto pedia para que fôssemos mais atenciosos com a aluna e que todo o e qualquer material dado em sala de aula fosse repassado para que a aluna não fosse prejudicada. E o pai dela com isso? Também não entendi. Mas de repente querem que a gente reze, ore, faça alguma promessa pelo seu restabelecimento. Não custa nada, vamos rezar pessoal! Professor tem tempo pra essas coisas. Pensei no pai e imediatamente lembrei-me da minha mãe. Ela morreu de câncer em 99 em pleno ano letivo e não me lembro desse mesmo livro pedindo que colegas, alunos, pais, funcionários olhassem para mim com atenção. Mas eu estava muito transtornado com a doença da minha mãe e não devo ter tido tempo pra ler o tal livro.
Mas hoje, véspera do dia do professor, resolvi ler. Fui ler porque diante daquela festa toda com bolos, presentes dourados e o olhar blasé da direção que sempre acha que tudo está ótimo, lembrei que um professor, colega nosso, está com mulher em estado grave e que nem por isso deixou de trabalhar e nem teve seu nome no livro preto pedindo atenção especial como a aluna da vesícula ou até como o pai que a gente nunca viu e nem sabe quem é, porque quando aparece é pra criticar algo que o professor, esse ser insensível e indolor fez, ou para evidenciar as qualidades de seus filhos. Não lembro em reunião de pais, de nenhum que tenha vindo dizer: “meu filho é uma peste, é uma praga, não consegue segurar um palavrão na boca, não respeita pai, mãe e tem a mania feia de agredir os colegas”. Todos são pais de “santos”. Incorporam e acreditam naquilo que incorporam. São seres espirituais. Os filhos são verdadeiras psicografias.
Mas voltemos ao livro preto. Não me lembro de nem eu e nem meus colegas que perderam pai, mãe, filhos, que tiveram que acompanhar familiares a hospitais em estado grave, que sofreram acidentes de automóvel e ficaram entrevados em casa, que morreram no mesmo acidente, de terem seus nomes no livro preto. Mas a escola moderna não pensa nisso. Não vai expor os problemas pessoais do profissional em um livro preto. Problemas só quem tem são alunos e familiares de alunos. Professor é um ser de outra ordem. Não dói. Não sofre. Apanha na cara, é acusado de abuso, de violência, de maltratar, mas não pode doer com isso. Ele não pode sofrer porque isso é um sentimento primitivo, imaturo, adolescente. Professor tem que ter sangue frio. Ou melhor, professor não pode ter sangue, tem que ser um ser morto. Sem viço, sem brio. Deve ele, concordar com tudo para o bem da educação e para não correr o risco de ser chamado de louco. De não ser acusado de ter surtado. Porque aquele que rompe, que sofre que dói, ta maluco. Não ta bem. Precisa de tratamento.
E por falar em tratamento não posso esquecer-me dos exames periódicos. Aquele que anualmente o profissional é submetido lembra? Alguém já foi indagado por algum desses médicos se tem pedra na vesícula? Algum desses médicos já te perguntou se você tem pai? Se ele está bem, se você está com algum problema emocional porque seu marido, seu filho está desempregado? Não? Médico não pensa nisso, mas professor tem que pensar. Até porque se o pai do meu aluno tem uma amante e o expulsou de casa por causa de um copo de Coca-Cola, isso compromete no rendimento do aluno e é problema do professor. Mas se professor perde pai e mãe ou tem filho doente. Isso não significa nada. Porque para esses problemas o “psicopedagogismo” não resolve.
Precisamos abandonar a sala e aula para que pensem em nós como seres humanos. Ou para que pensem neles como desumanos. Uma escola precisa de aluno, mas se ela não tem no professor o porta voz da sua bandeira, ela não tem nada. Ela é vazia porque a voz de uma escola não é o aluno, é o professor. O aluno é o multiplicador dessa voz e se uma direção, se um estado, uma secretaria não entende isso, nada mais nos resta a fazer senão romper com isso tudo, mesmo correndo o risco de sermos tachados como loucos. Às vezes o surto se faz necessário para acordar essa apatia generalizada, promiscuída, prostituída, desrespeitosa e mercantilista que faz do processo educativo nesse país um processo decadente.
Nem quero ir para o livro preto, nem quero que os meus colegas vão para o livro preto, mas precisamos olhar no olho do professor e perceber que existe uma alma ali, que existe uma vida ali e que essa vida precisa ser tão preservada quanto a vida da menina da vesícula e do pai desconhecido que só aparece para servir de desculpas para os nossos fracassos. Pensar em educação não é pensar em número, em quantidade, em lucro. Isso não é para o educador, é para o empresário. E se dentro de um espaço escolar onde somos todos paus mandados, onde estamos com a cabeça sempre na guilhotina e a prêmio, não unirmos forças, não criarmos o hábito de olhar o outro com generosidade, acabaremos por sucumbir. Quem aponta nosso próximo emprego, nossa próxima possibilidade de trabalho, além da nossa competência, é a amizade e a confiança construída. Não sejamos desagregadores, não hajamos como patrões, porque não somos. Somos todos empregados e não sabemos o que virá e nem como será o amanhã.
Feliz dia dos professores!
Rio de Janeiro, 2008.