Roberto DaMatta – O eleitor e os eleitos
Em muitas capitais e outras cidades importantes, temos uma nova leva de prefeitos legitimamente eleitos, após uma competição na qual eleitores e eleitos se manifestaram livremente na busca de apoio e na apresentação de suas propostas O liberalismo também
Publicado 29/10/2008 11:12 | Editado 04/03/2020 16:36
O resultado agregado do processo como um todo promoverá um novo mapa eleitoral que será avaliado e estudado pelos especialistas. Índices, coeficientes, porcentuais, gráficos e outros códigos de entendimento desse nosso modo de escolher e legitimar administradores públicos serão os indicadores de novos (e velhos) debates, tendências e revelações. Como sempre, a realidade vai promover suas surpresas e introduzir novidades nesse rito eleitoral que transforma milhões de ´microescolhas´ individuais num resultado visível que confirma ou infirma velhas expectativas e doutrinas; que coroa um candidato, colocando o seu adversário num segundo lugar que, nesta etapa do ritual, significa simplesmente a pêra sempre dura de engolir.
Antigamente, o governante era um escolhido de Deus porque sua legitimidade era dada por descendência divina. As antigas realezas haviam nascido no outro mundo e os reis eram um dos mediadores mais importantes entre deuses e homens. Em muitos casos, eram uma prova cabal de que, afinal de contas, nós – seres nutridos também e sobretudo a sofrimento e morte – não havíamos sido totalmente abandonados pela divindade que nos concedeu a graça de termos uma linhagem e governantes abençoados nos céus.
Hoje, essa legitimidade é feita pela soma de escolhas individuais dos cidadãos que votam individual e, supomos, autonomamente, e não em grupo ou família. Numa ponta há um laço intransferível, porque pessoal, entre o eleitor e o seu eleito (o candidato); num outro pólo, há o agregado produzido pela reunião de todos os votos individuais que elegem ou não o postulante. A química divina dos antigos é hoje a famosa e não menos misteriosa passagem da quantidade para e qualidade. Receber mais votos qualifica e, mais que isso, consagra o eleito No processo, a tal campanha eleitoral que em todo lugar tem o feitio de uma peregrinação do famoso (e no Brasil, do superior, chamado de ´homem´) em busca do pequeno (chamado coletivamente de ´povo´), demarca-se um campo de disputa. Um jogo que, dependendo da experiência e do modo pelo qual a sociedade demarca a competição, pode surgir como algo claro e cordial, como uma briga de faca ou, pior que isso, como um concurso de cinismo e de hipocrisia.
No meu humilde entender, o que tipifica o processo eleitoral no Brasil é a sua imagem como uma luta na qual os disputantes podem e devem vencer a todo custo. O que não pode ocorrer é a derrota, ainda lida como algo vergonhoso porque, segundo a nossa cabeça fechada por muitas camadas de aristocratismo mal criticado e recalcado, só se entra numa disputa eleitoral (entendida como luta pelo poder – palavra forte no nosso pobre vocabulário político), para ganhar! Ora, se o treco é competitivo, tem uma marca do imponderável, desenha-se como uma disputa com regras claras, acordadas pelos competidores, se o apelo é individual e a decisão é livre, como pode ser vergonhoso perder, a menos que se tenha uma mente fascista?
Quando eu, ainda jovem, escrevi – movido pela indignação e pelo sentimento de justiça – uma carta aberta contra um conhecido político e intelectual que atacava a instituição na qual eu trabalhava e dava todas as minhas forças para tornar um centro de estudos digno desse nome; e vi essa carta ser usada contra mim, ouvi de muitas pessoas um conselho estarrecedor. Ora – diziam -, o uso de sua carta contra você faz parte da ´política´ E em política e no jogo do poder, acrescentavam, vale tudo!
O realismo contido nessa experiência me deu uma medida exata da má consciência com a qual ainda hoje lemos o campo do poder e a área da política. Ela sempre surge como um ator onipresente nas disputas eleitorais, revelando a nossa dificuldade em ver o outro como um concorrente e não como um inimigo. Mostrando como acreditamos piamente que o tal poder não pode ser entregue a qualquer um, pois só nós – ´eleitos´ – somos dignos dele e temos o direito de utilizá-lo. Ora, se isso não é uma mostra de uma total segregação entre os chamados ´homens´, os poderosos (que um dia foram eleitos) e que, hoje, nos governam e nós; então eu quero ver minha avó andar de bicicleta! Se isso não é o pior dos fascismos, esse último reduto dos que ainda pensam que podem governar porque fizeram (ou são) algo que lhes deu um equivalente ao ´direito divino´, então eu quero ser mico de circo!
Que os perdedores recebam minha simpatia e os eleitos os meus parabéns. Desejo que o Rio de Janeiro e minha querida Niterói tenham o melhor. Espero que todos cobrem não apenas as promessas e os programas, mas sustentem, como novidade, o laço. O elo sagrado de uma confiança entre o eleito e o eleitor, sem o qual não há democracia.
Roberto DaMatta é antropólogo e colunista do Diário do Nordeste