Flávio Arruda – Comunicação, consumo e inclusão: as diferenças em um mercado para iguais

“Como vai você”?
Assim como eu
Uma pessoa comum
Um filho de Deus…”



(Nem Luxo Nem Lixo, Rita Lee)

Antes de ser um ato o consumo é um processo, parte fundamental e determinante dos processos ideológicos de dominação conduzidos pelos meios de comunicação numa cultura de massas, na indústria cultural. Essa indústria é formada por um poderoso sistema de geração de lucros, manipulação e controle social através da comunicação massiva da ideologia dominante. É a mercantilização da cultura legitimada pela demanda real e simbólica de produtos. Uma pessoa só é aceita e aceita a si mesmo quando exerce a cidadania do ter e passa a ser consumidora, movendo as engrenagens da indústria cultural.


 


São muitas as teorias que estudam, pretenderam e pretendem explicar a influência dos meios de comunicação nos hábitos e na vida das pessoas, buscando verdades em momentos históricos diversos da evolução humana em sua feição ideologicamente construída de cidadão, o consumidor. A busca é pela ponta do novelo das causas e efeitos do mercado gestado pela indústria cultural nos hábitos, na identidade e na visibilidade como ‘cidadãos consumidores’ de um numeroso segmento da população: as pessoas com deficiência.


 


Estatísticas de diversos organismos internacionais e nacionais dizem que há seiscentos milhões de pessoas com deficiência no mundo, vinte e cinco milhões delas no Brasil. No Ceará são um milhão e meio, sendo trezentas e vinte mil só em Fortaleza. Esse enorme contingente tem respeitados seus direitos, dos humanos aos de consumidores? Pode haver respeito a uns sem que haja aos outros, ou vale o princípio da interdependência consagrado nos direitos humanos? Ora, em um sistema onde o consumidor é o verdadeiro cidadão de direitos, a resposta seria um indubitável sim. No entanto, a resposta é um frágil depende, um não quase certo.


 


Se a resposta é quase certa, há um labirinto de possibilidades a percorrer em busca de sua(s) causa(s). O ciclo histórico de exclusão e invisibilidade que as pessoas com deficiência enfrentam, causador de estigma, preconceito e discriminação, com certeza é uma delas, fornecendo o combustível sócio-cultural para uma comunicação igualitarista, unificadora, indiferente às diferenças. Aliás, para ficar no campo do consumo, talvez seja melhor dar a comunicação o seu nome de mercado, publicidade, embora tal ferramenta esteja mais para Midas do que para o Minotauro, aquela aberração mitológica. Dentre as modernas e contemporâneas aberrações está o fato de a publicidade, espelhando a cultura ideologicamente dominante, propagar em suas mídias o conceito hegemônico da normalidade, onde as diferenças (de classe, cor, etnia, gênero, crença, condição física e/ou mental) são solenemente ignoradas em nome de uma igualdade absoluta. A ideologia dominante se traduz em uma de suas construções: a ‘pessoa normal’. O mercado vende para seus iguais: as ‘pessoas normais’.


 


Sob o domínio dos mass media, a pessoa normal tomou feições de mercado, a pessoa de sucesso. Entendida como um cidadão pleno, a pessoa de sucesso é um homem rico, branco, caucasiano, crente em um deus que aceite o mercado, heterossexual, sem nenhuma deficiência. É a pessoa ideal. “Eu preciso ser ela”, pensa o consumidor bombardeado pela normalidade feita referencial de corpo. Nesse conceito, onde estão as diferenças?


 


Mas sempre existe uma forma (ou seria fórmula?) para que a eterna justiça social do deus mercado e sua propaganda ideológica, sua publicidade persuasiva, construam a igualdade como valor supremo, garantindo o consumo ‘para todos’. Já faz certo tempo que o marketing fala em segmentação. Agora, o toque de Midas está na venda de produtos, serviços e idéias personalizadas, na satisfação de cada desejo, cada necessidade do consumidor e do grupo a que ele pertence. A segmentação parece ser a vez das diferenças.


 


No entanto, segmentação nada mais é do que uma estratégia de vendas para algumas parcelas do mercado. Se mulheres negras já não escondem sua negritude, moda afro, tranças étnicas, maquiagem para a pele com alto teor de melanina; se gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros afirmam sua sexualidade além dos armários, pacotes turísticos específicos, programas de TV com temática homoerótica, passeatas fashion, vestuário próprio. Se as crenças se multiplicam, um estado laico que ergue estátuas de santas com dinheiro público. Ou seja, para cada grupo ou indivíduo com necessidades específicas, uma gama quase infindável de produtos prontos para satisfazer desejos singulares.


 


Seria a segmentação realmente o fim da normalidade como ideologia dominante refletida no mercado? O caso das pessoas com deficiência pode ajudar em parte da resposta. E se aquela negra for cadeirante, há mercado para satisfazer suas necessidades enquanto mulher e deficiente? E se o homossexual for surdo, a lésbica cega? E um carismático com deficiência mental, pode comprar uma imagem da santa sem ser estigmatizado na banquinha? E as famílias, os amigos, os vizinhos, a sociedade enxerga neles e nelas pessoas com necessidades específicas que o mercado deve satisfazer?


 


Se a resposta for não ou “nunca tinha pensado nisso”, a segmentação do mercado confirma a invisibilidade e a exclusão desse enorme contingente, parte da ainda maior diversidade humana. Na forma atual, segmentação é, na verdade, segmentação dos ‘normais’. A badalada diversidade não é inclusiva, é exclusiva. É mais do mesmo.


 


Há insipientes iniciativas inclusivas no mercado, exceções a confirmar a regra, pois existem concretas oportunidades de lucro. Tais iniciativas trazem em si a maior das exclusões – como na fábula do escorpião que ferroa o sapo que lhe salva a vida por não poder conter seu instinto – a financeira, a de classe. A negra deficiente encontra todas as condições de acessibilidade, um carro adaptado, uma cadeira motorizada, uma loja sem escadas e com boa circulação, roupas inclusivas; a lésbica cega encontra programas de voz, alfabetização e impressos em Braille, carros com sinais sonoros, educação inclusiva; o surdo homossexual tem plano de saúde, interpretes de LIBRAS ao seu dispor, sinalização visual; o carismático deficiente mental faz terapia, controla as crises, tem o amor da família e um altar em casa com imagens ungidas pelo padre Marcelo e vindas de Portugal. O mercado resolveu. Agora essas consumidoras são tratadas como heroínas, pessoas ‘com necessidades especiais’ sanadas, exemplos de vida. Às outras – a regra – a benevolência, a caridade, o altruísmo dos magos do mercado e dos valores uniformizantes da indústria cultural reserva Teletons, campanhas de arrecadação, Dias de Princesa e uma porção de moedas jogadas às mãos estendidas no próximo sinal. Algumas bem aventuradas, em um lava-mãos coletivo de solidariedade, são pinçadas de sua vida invisível de exclusão para os holofotes do consumo, uma celebração instantânea de cidadania.


 


Explicações maniqueístas costumam ter a vida curta dos argumentos fáceis. Não se trata de tentar fazer do deus mercado um demônio, ele próprio um anjo decaído. Trata-se de buscar entender o(s) motivo(s) para que seja excluído do consumo um enorme contingente de pessoas, ainda que haja parte significativa delas em condições reais para consumir e parte ainda maior em condições de conquistar condições de vida que permitam seu acesso ao mercado. Como o consumo é um processo composto de muitos elementos e parte de um processo maior que move suas engrenagens para garantir a hegemonia dominante pelo controle social, a busca do(s) motivo(s) para a exclusão quase total das diferenças, das pessoas com deficiência do consumo, acaba por encontrar elementos em vários aspectos da vida em sociedade, no mercado da vida.


 


Boa parte das conquistas inclusivas atuais por parte de segmentos excluídos, as ditas minorias, são fruto das muitas mobilizações e lutas pela superação das condições enormemente desiguais dessas pessoas em relação aos ‘normais’, entre as que lutam estão as com deficiência. As conquistas tiveram ressonância no mercado, que viu surgirem da afirmação política e da organização dos excluídos grandes oportunidades. Mesmo que as lutas estejam ligadas, na maioria, a garantia das necessidades primárias da existência, há mercado destinado a prover essas necessidades, de medicamentos a produtos hospitalares. A teoria das necessidades de Pavlov diz que, supridas as necessidades básicas, o homem vai em busca de satisfazer outras necessidades, até chegar a satisfazer as necessidades do próprio eu. Parece ser esse o caso de parcela significativa das pessoas com deficiência.


 


O mercado precisa ser estimulado por uma mudança cultural que supere o conceito excludente de normalidade para permitir a participação ativa das pessoas com deficiência e de todas as diferenças.


 


A comunicação feita para persuadir e influenciar para o consumo, a publicidade, serve ao marketing que faz das necessidades desejos. É o mercado para os iguais, a diversidade admitida por ele é entre os ‘normais’. Seja pelo grande e crescente número dos diferentes, seja por sua afirmação como indivíduo, o mercado para iguais está superado. Mesmo baseado na máxima “mudar tudo pra deixar tudo como está” a indústria cultural e seu mercado devem superar o paradigma da igualdade absoluta pela igualdade na diferença. Isso se faz com muitos atores sociais se dispondo a tarefa.


 


E, silenciosamente, a roda gira. As leis, começando pela constituição federal, proíbem qualquer tipo de discriminação, inclusive no consumo, como reza o Código de Defesa do Consumidor; há legislação de acessibilidade física e ambiental em todos os níveis, faltando agora seu cumprimento efetivo; as pessoas com deficiência, inspiradas na luta mais geral por direitos humanos e por respeito à diversidade, ampliam sua autoconsciência, exigindo respeito por suas especificidades; a sociedade avança no respeito à diversidade, abandonando práticas tutelatórias, integracionistas e preconceituosas.


 


Um novo tempo se anuncia. Diz-se que os dias atuais são a era da inteligência, do conhecimento, que a era industrial esta superada, junto com a maioria dos seus valores reais e simbólicos. As mudanças de base tecnológica avançam com velocidade, mudando a produção, o trabalho, o consumo, a vida. A internet aumenta a cada dia seu alcance, possibilitando novas relações em bases não físicas. Estão criadas, portanto, as condições objetivas para que o ‘eficiente’, o ‘normal’ deixe de ser a referência social e ideológica de corpo físico para a indústria cultural, pois tal referência é parte daquilo que está definitivamente superado.


 


A era do conhecimento já produziu um novo mercado, que deve dar realmente a todos acesso aos seus bens, produtos e serviços. Sendo uma era, estando mantidas as desigualdades da sociedade de mercado, o capitalismo, todos são aqueles que podem consumir, ainda que sob novas formas. Os segmentos historicamente excluídos, continuarão sendo espectadores das boas novas, por, em sua maioria, não terem acesso às condições que permitem participar de seus benefícios? Estarão à margem? Eis o desafio.


 


Nunca na história humana foram tantas as possibilidades de iniciar o caminho para tirar as ditas minorias da exclusão em que vivem e permiti-las os benefícios da nova conjuntura. A comunicação tem parte nessa história. É dela a tarefa de usar todas as técnicas e ferramentas ao seu alcance para permitir o trabalho, o consumo possibilitado por ele e o pleno exercício da cidadania, incluídas as pessoas com deficiência.


 


Flávio Arruda é comunista, curioso e colaborador do Vermelho/CE