Carteiro viajante é referência no sertão cearense

Raimundo Santiago de Oliveira, de 96 anos, é conhecido nos Sertões de Inhamuns por sua coragem e destemor.

Aos 96 anos de idade, Raimundo Santiago de Oliveira, mais conhecido por Guerreiro, guarda na memória lúcida recordações do tempo em que trabalhou como carteiro viajante dos Correios (condutor de malas) nos sertões de Aiuaba, Saboeiro, Jucás e Cariús. Foram mais de quatro décadas de trabalho. Durante dez anos trabalhou a pé, conduzindo o saco de lona (malote) nas costas e depois a cavalo. Enfrentou sol e chuva, mas nunca desanimou, fazendo jus ao apelido que herdou do pai.


 


Guerreiro é um personagem conhecido nos Sertões dos Inhamuns. Desde jovem usa paletó que o diferenciou das demais pessoas. “Vi um comerciante, em Saboeiro, Dário Braga, usar sempre o terno, achei bonito e mandei fazer um”, disse. Mesmo em casa e nas caminhadas matinais, pelas ruas da cidade, sempre usa o paletó.


 


O apelido herdou do pai, Raimundo Ferreira Lima, conhecido pela bravura e destemor. “Meu pai era uma espécie de cangaceiro, homem de empreitada do patrão. Naqueles tempos as questões eram resolvidas na bala”. Ele afirma que nunca atirou em ninguém. “Sempre fui trabalhador, da roça, e até hoje preservo o meu nome, a minha história de coragem, moral, sem falta”.


 


É verdade. Guerreiro é uma memória viva dos tempos difíceis, da palavra firme e certa, da honestidade e da bravura do sertanejo que ajudou a forjar o crescimento das antigas vilas rurais. O trabalho inicial foi na agricultura, com o pai. Aprendeu a ler e escrever com uma tia, a professora particular Maria Odazina da Conceição. “Estudei até o quinto livro”. Mais tarde, a leitura iria garantir o trabalho de carteiro viajante.


 


O emprego nos Correios veio por acaso. Em 1932, o condutor de malas José Inácio largou o trabalho. “Ele chegou afobado, jogou a mala no chão e disse que não trabalharia mais”, conta. “A agente Branca Amélia Firmeza ficou alvoroçada. Dias depois, eu ia passando e ela me ofereceu o serviço”. Aceitou na hora. Outros recusaram o trabalho. “Era arriscado, pesado, e exigia responsabilidade”.


 


Os amigos chamaram “seu” Guerreiro de doido, mas ele enfrentou com coragem e determinação a nova jornada e ainda dividia o tempo com o trabalho na agricultura. Na época, os malotes dos Correios eram conduzidos pelos trens. Seguiam as rotas dos trilhos. Depois, continuavam pelos carteiros viajantes. No Centro-Sul, a ferrovia chegava até o município de Cariús por meio de um ramal a partir de Iguatu.


 


Em Aiuaba, que era distrito de Saboeiro, não havia agência dos Correios. O trabalho do carteiro Guerreiro era conduzir o malote de Cariús, passando por Saboeiro e depois Aiuaba. Enfrentava sol e chuva. Em época invernosa, passava rios e riachos nadando ou de canoa. “Era um saco de lona com cartas, dinheiro e encomendas”, conta. “Tentaram me assaltar, mas enfrentei com bala e com a ajuda do cachorro Jacaré”.


 


Na primeira década de trabalho, o percurso durava quatro dias de caminhada. Comia e se arranchava nas casas. Dormia nos alpendres. Depois conseguiu comprar um cavalo e passou a conduzir o malote no lombo do animal. Somente no fim dos anos 60 passou a andar de carro. Exerceu ainda a função de agente em Aiuaba, Saboeiro e Iguatu.


 


Um ano antes de se aposentar em 1974, viúvo, aos 61 anos, casou, pela segunda vez, com Maria Félix da Silva Oliveira, na época com 20 anos de idade. A diferença de 41 anos entre marido e mulher provocou comentários na cidade e entre os amigos. O casal é um exemplo de harmonia e respeito. Tiveram seis filhos. Vivem felizes. Do primeiro casamento, foram cinco filhos. No total, ele tem mais de 50 netos. “Trabalhei para educar meus filhos”, diz com orgulho. Tem filhas professoras. Enfrentou preconceitos quando a sociedade local não queria que negros dançassem no meio da elite.


 


“As histórias de ´seu´ Guerreiro povoam nosso imaginário, relembrando fatos trazidos pela lembrança desses episódios presentes em sua memória. Ele é símbolo da força, da coragem e destemor”, diz o estudante Tarcísio Araújo Mota, que escreveu monografia de graduação em Pedagogia na Uece/Cecitec, em Tauá, com o título “Seu Guerreiro: reminiscências de um carteiro viajante”.


 


Leia também: “Seu” Guerreiro, arquivo vivo do sertão