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Letônia: aos 18 anos, um país dividido

Nos chamados países bálticos, no caso vertente na Letônia, proíbe-se a liberdade de circulação dos cidadãos da União Europeia, impede-se a realização de uma reunião sobre “Um futuro sem nazismo” e… não só se permite como se vê com simpatia e apoio táci

Uma viagem a Riga, Letônia, Europa. Europa? Fui para ver um desfile de ex-nazis, sobreviventes das Waffen SS que, bem voluntários (a maioria) ou recrutados à força, ajudaram os alemães no cerco de Leningrado e participaram ativamente no extermínio dos judeus letões.



São velhos, mas são muitos.



É 16 de Março pela manhã. Vão-se agrupando lentamente nas ruas da cidade velha, alguns deles com a sua boina militar. São gente pobre, vão com ar infeliz mas não estão sós nem são poucos. A cidade está vigiada por milhares de polícias, em cada esquina há grupos de agentes à paisana. No dia da sua reunião anual são acompanhados por milhares de filhos, de netos, de simpatizantes e amigos.



É uma demonstração de força, não um momento de nostalgia. 16 de março foi o batismo de fogo das divisões nazistas da Letônia contra as tropas soviéticas, em Pskov, se dispunham romper o cerco da que então se chamava Leningrado e que hoje se chama São Petersburgo.



Na véspera, chega a notícia da proibição da manifestação pelas autoridades. É uma novidade. Até há alguns anos o dia 16 de março era feriado nacional. O parlamento da nova república “independente”, que ainda não era membro da UE, votou-o por uma larga maioria. Depois alguém se lembrou que talvez na Europa não achassem graça e revogou-se o feriado.



Mas os nazistas letões não renunciaram aos seus desfiles que acabam junto a um monumento, em pleno centro de Riga. Nem tinham motivo para isso, já que têm a bênção de ministros e nos seus desfiles participam não poucos deputados.



Tanto assim é que os antifascistas letões, antes de mais os russos étnicos, estavam encantados, pensando que a proibição era o sinal de que tinham pensado e, melhor ainda, era uma consequência da sua reação, ao terem solicitado autorização para uma manifestação no centro de Riga para esse mesmo dia, e de terem convocado uma conferência com a participação de organizações antifascistas estónias, finlandesas, russas, polacas e ucranianas.



Mas em Riga, Letônia, Europa, as coisas passam-se de outra forma. A polícia letã recebeu ordem de não deixar passar os convidados para a conferência “Um futuro sem nazismo”.



Prenderam nove jovens na fronteira com a Estônia, tiraram-lhes os documentos e devolveram-nos à Estônia. Motivo? Constavam – disse um funcionário – da lista de pessoas “indesejáveis”.



A um outro estoniano, Sergei Tchaúlin, detiveram-no ao regressar ao seu país. Todos eles cidadãos europeus, sem antecedentes penais, a atravessar uma fronteira da Europa de Shengen, a Europa da liberdade de movimento.



A um outro convidado, também estoniano, Dmitry Linter, fizeram-lhe pior. Chegava de trem vindo de Moscovo. A um Europeu que voltava à Europa mandaram-no de volta para a Rússia, sem mais explicações que não fosse a de que acabava de receber um prêmio de jornalismo em Moscovo.



No dia seguinte, a polícia, com grande aparato, ocupou todo o centro de Riga ao redor da Praça Domskij e, com muitas deferências, deixou passar a manifestação das SS nazistas, no meio de um mar de bandeiras nacionais. Em contrapartida deteve um deputado, cidadão da Letônia mas russo étnico, juntamente com alguns ativistas antifascistas que protestavam nas calçadas.



À conferência, iludindo as obscuras listas da polícia, chegaram Maksim Reva e Mark Siryk, que já tinham cumprido um mês e meio e 7 meses de prisão, respectivamente (até que foram absolvidos), por terem organizado em 2007 “desordens públicas” para impedir a absolutamente indispensável (para o democrático governo estoniano) retirada do centro de Tálin do monumento ao soldado soviético vitorioso contra o nazismo.



Essa mesma, Tálin, Estônia, Europa, em que se está a realizar o julgamento de Arnold Meri, de 89 anos, herói da União Soviética, acusado de ter participado nas deportações de depois da guerra.



Está á morte, com câncer, meio cego, não há provas das acusações, sendo a mais importante uma entrevista dada pelo próprio Meri.



Mas o juiz pretende que o réu esteja presente ao julgamento, e já suspendeu o julgamento à espera da cura do acusado. Ao que parece, para o condenar a prisão perpétua ou, melhor ainda, a que morra em pleno julgamento, desonrado no país em que viveu toda a sua vida.



Tudo isto enquanto o seu irmão, Lennart Meri, que foi presidente da Estônia “independente”, escreve o entusiástico prólogo de um livro muito querido que exalta as SS estonianas (Hitler teve aqui não poucos adeptos).



Durante o período soviético, Lennart ensinava tranquilamente na Universidade de Tálin, enquanto o seu irmão Arnold – que hoje está no pelourinho – teve que esperar que morresse Stálin para que o partido comunista o reabilitasse, pois não o considerava demasiado fiel.



Assim se escreve a história nestes países bálticos que entraram na Europa, obcecados por um passado que não conseguem esquecer, e que lhes está a envenenar o dia a dia.



Mas a questão é: a que se deve esta vontade de vingança, inclusive até, vingança contra os pais e contra os filhos? Entre 1996 e 2008 nasceram na Letônia 9.000 crianças marcados pelo pecado original de serem “não cidadãos”.



Porque nascer na Letônia de pais russos não equivale a ter direito à cidadania, enquanto quem nasce no estrangeiro de pais letões é automaticamente cidadão letão.



É assim que pensam pessoas normais? Não parece. Em Riga vi que entre os russos e os letões as relações são normais. Até amáveis, nas repartições públicas e nos estabelecimentos, onde se fala russo com toda a normalidade, sem que ninguém se escandalize ou dê importância a isso.



Parece que tudo isto se deve a uma elite política, em grande parte chegada do estrangeiro, sobretudo dos EUA, filhos de exilados da época soviética, que não passaram por nenhuma “desnazificação”, e que foram cuidadosamente seleccionados para “dessovietizar” o país e ocupar todos os gânglios do Estado sem constituir demasiada preocupação o seu calibre democrático.



O resultado é, por exemplo, numa cidade na sua maioria de língua russa não haver um só cartaz, nem um sinal de trânsito, nem tampouco publicidade ou o painel identificativo de uma loja, escritos em russo.



E que na Letônia, 16 anos depois da sua independência, 7 depois da sua entrada na Otan e 5 depois da sua entrada na União Europeia, haja 372.421 “alienígenas” (26% da população) carecidos de direitos civis.



Nem sequer podem votar nas eleições municipais. São cidadãos europeus mas também não podem votar nas eleições europeias. Letônia-Estônia-Europa. Europa?


 


Giulietto Chiesa é jornalista, deputado do Parlamento Europeu.



Este texto foi publicado em:
www.megachip.info/modules.php?name=Sections&op=viewarticle&artid=8860 e traduzido por José Paulo Gascão para o site ODiario.info