Há 30 anos, a revolta dos peões paralisava a capital dos mineiros
Um pouco mais de um século de história, provavelmente tenha sido a
primeira e única vez que Belo Horizonte parou, com medo de sair às
ruas. A cavalo ou a pé, com revólver, cassetete e bombas de gás, a
Polícia Militar tentava conter a fúria de uma legiã
Publicado 28/06/2009 04:50 | Editado 04/03/2020 16:51
Era julho de 1979. Há menos de cinco meses no poder, o presidente João Figueiredo, o último da ditadura militar, já tinha motivos de sobra para ficar apreensivo. Apesar da política de distensão, a estrutura sindical e a legislação trabalhista mantinham os movimentos dos trabalhadores sob a tutela do Governo. Mesmo assim, a abertura permitiu uma retomada das atividades sindicais, duramente reprimidas depois de 1964. Já na posse, em março, Figueiredo enfrentou uma greve de 160 mil metalúrgicos paulistas. Apenas em1979, aconteceram 429 greves, que paralisaram mais de três milhões de trabalhadores de diversas categorias em todo o país.
Foi a partir do ABC paulista que a onda grevista espalhou-se para o resto do país e provocou uma reviravolta no mundo do trabalho, entre 1978 e 1980. Embora houvesse sérias restrições às greves, os trabalhadores foram para as ruas, protestando contra a legislação trabalhista e o arrocho salarial.
Nas alterosas
Em Minas, o cenário não era mais alentador. O governador Francelino Pereira (Arena) – o primeiro não mineiro a comandar o Estado, indicado pelo presidente Ernesto Geisel, antecessor de Figueiredo, e eleito pela Assembleia Legislativa – convivia com problemas na área trabalhista desde o início do mandato, em março. Primeiro, foram os fumageiros, pouco antes da posse; depois, os professores da rede pública.
Durante o ano de 1979, 400 mil trabalhadores mineiros participaram de greves: metalúrgicos, motoristas e trocadores de ônibus, comerciários, funcionários de hospitais, bancários, professores públicos e operários da construção civil. Mas a rebelião dos pedreiros, embora anunciada, surpreendeu e assustou. Ninguém esperava tamanha violência.
“Preparamos a paralisação com muita antecedência. O trabalhador estava insatisfeito e não escondia isto. Mas não queríamos confusão, truculência”, garante, hoje, o juiz classista aposentado Francisco Pizarro, 81 anos, na época presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil. Para Pizarro – que era considerado pelego, mas sustenta que não -, “infiltrações de esquerda, estranhas ao movimento”, e os próprios militares contribuíram para que a greve ganhasse outro contorno.
Aumento
Entre 30 de julho e 3 de agosto, os operários tomaram as ruas do Centro reivindicando aumento salarial de CR$ 5 mil (a moeda corrente era o Cruzeiro) para servente, CR$ 8 mil para oficial, CR$ 12 mil para encarregado e CR$ 20 mil para mestre de obras. Queriam também a correta anotação das carteiras de trabalho; aviso prévio de 30 dias; e a proibição de rebaixamento do salário quando da troca de emprego.
“Foi um momento de fome. Por isso, batemos em qualquer direção. Queríamos uma vida melhor, um salário decente”, recorda Osmir Venuto da Silva, um dos grevistas, hoje com 56 anos, há 20 deles como sucessor de Pizarro no Sindicato. Com este propósito, sob o olhar incrédulo do belo-horizontino, os grevistas transformaram as ruas centrais em campo de batalha.
A segunda-feira, 30, amanheceu com obras paralisadas em toda a cidade. Saindo direto de casa, os operários ocuparam a Praça da Estação, onde começaram os piquetes. A PM tentou conter os manifestantes, que reagiram, romperam o cerco e saíram em passeata em direção ao antigo campo do Atlético, na Avenida Olegário Maciel, onde hoje está o Diamond Mall. Um motorista de táxi tentou abrir caminho no meio da multidão e atropelou um operário. A massa reagiu, incendiando o carro do taxista.
Acuados pela polícia e encontrando fechado o velho campo do Atlético – que passava por reformas, mas deveria estar aberto -, os grevistas arrombaram os portões e se armaram com pedaços de pau, cano, pedra e tijolo para enfrentar a PM, que reagia com violência aos protestos. No confronto, o tratorista Orocílio Martins Gonçalves, então com 24 anos, foi morto com um tiro no peito. A greve se radicalizou.
Corre-corre
Uma multidão incontrolável, correndo a esmo, voltou a ocupar o centro da cidade. O transporte coletivo foi parado com pedradas e pauladas pelos grevistas. Em pânico, motoristas, trocadores e passageiros saltavam dos ônibus como podiam: espremendo-se pelas portas ou janelas dianteiras, já totalmente quebradas. Enlouquecidos, operários invadiam lojas e saqueavam o que viam pela frente. O comércio não resistiu e fechou as portas. BH parou.
“Queremos oito mil. Peão precisa de comida” e “Basta de exploração” eram algumas das mensagens que os operários empunhavam em faixas e cartazes, mas que não sensibilizaram o sindicato patronal, que recusou a proposta dos trabalhadores. Com a radicalização e sem chance de conciliação na Delegacia Regional do Trabalho (DRT), novas frentes de batalha foram formadas em sucessivas reuniões, dia e noite,no Palácio da Liberdade e no Sindicato dos Bancários. Todas buscando uma solução para pôr fim ao conflito.
No meio da tempestade, Pizarro tentava conter a massa, mas se revelava impotente. “Ele (Pizarro) nunca teve controle sobre nada. Por isso, resolvemos agir”, afirma, hoje, o ex-presidente do Sindicato dos Petroleiros Wagner Benevides, um dos sindicalistas responsáveis pela vinda do então líder metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva a BH. Lula – que falou para os peões no estádio do Atlético e pediu calma – reforçou a adoção de medidas já em curso para tentar conter a ira dos operários.
“Tínhamos de segurar os trabalhadores dentro do campo (do Atlético). Garantimos o que foi possível: água, leite, banana”, recorda o então secretário estadual do Trabalho, Pedro Gustin, que, no primeiro dia de greve, agiu sem a presença do governador, que estava fora do Estado. Do Palácio do Planalto, em Brasília, o recado era claro. “O problema é seus. Vocês que resolvam”, lembra Gustin.
No decorrer da semana, variando apenas de intensidade, os confrontos entre trabalhadores e policiais continuaram. O clima era de pavor. No penúltimo dia da greve, quinta-feira, em decisão surpreendente, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT-MG) considerou legal a greve, determinando o reajuste salarial e o pagamento dos dias parados. A sentença, porém, não englobava todas as reivindicações. Favorecia, na verdade, uma estratégia patronal, cuja contraproposta provocava uma divisão na categoria. Encarregados e mestres tiveram seus pleitos atendidos, enquanto a pendência permanecia com relação aos salários de oficiais e serventes.
Outro dia
Uma assembleia no dia seguinte, no velho estádio do Atlético, com milhares de operários dentro e fora do campo, expôs de forma violenta a divisão da categoria. Com a PM de prontidão na Avenida Olegário Maciel, Pizarro colocou em votação o fim do movimento. “Trabalhadores que querem a greve legal, fiquem à direita. Os que não querem, à esquerda”, conclamou, referindo-se à decisão da Justiça Trabalhista, que condicionava o cumprimento da sentença ao retorno imediato ao trabalho. Foi o estopim de uma nova guerra.
Bastou uma parte se posicionar pelo fim da greve para que o confronto recomeçasse, desta vez entre os próprios peões. Paus, tijolos e pedras voaram em todas as direções. O corre-corre era incontrolável. Não havia opções. Muita gente, deitada no chão para se proteger, foi pisoteada. Pizarro caiu, atingido por uma pedrada na testa. A cena era patética. Num cubículo, o presidente se protegia atrás de cadeiras e com um pedaço de porta por cima. “A decisão tinha de ser tomada por votação”, justificou, na época, atordoado. “Faria tudo de novo”, reafirma, hoje, o ex-dirigente.
A rebelião dos peões terminou ali. Os ganhos trabalhistas, contudo, foram passageiros. Pouco mais de um mês depois da paralisação, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) suspendeu a decisão do TRT-MG, acatando recurso do sindicato patronal.
Sidney Martins, repórter do jornal Hoje em Dia, de 28/06/2009
Intertítulos do Vermelho Minas