Única deputada federal da Bahia, Alice diz que “o jogo é bruto”
A única mulher eleita deputada federal pelo estado da Bahia, Alice Portugal (PCdoB), que cumpre o seu terceiro mandato e assumiu a liderança da bancada feminina no ano passado, deu longa entrevista ao site Bahia Notícias, que reproduzimos aqui no Vermelho. Dona de uma oratória invejável, a parlamentar demonstra que não segue o adestramento dado às mulheres – “de falar mansinho e chorar baixinho, e estar atrás do grande homem". A deputada “Luluzinha” diz que o jogo é bruto.
Publicado 18/10/2010 15:49

Leia a entrevista
Bahia Notícias – Qual a importância de ser a única mulher que conseguiu se eleger deputada federal na Bahia?
Alice Portugal – Em primeiro lugar é a garantia de que a voz da mulher esteja presente nos espaços de poder. Obviamente, no Brasil nós temos uma sub-representação das mulheres. O Brasil passa vexames internacionais quando comparado a países como Paraguai, Namíbia, Moçambique e a Espanha, onde 50% do parlamento é para cada gênero. A Argentina tem 46% do parlamento composto por mulheres. Então, não é possível que um país onde você tem 52% do eleitorado feminino, onde as mulheres são a maior parte dos aprovados em concursos públicos, onde a maioria dos professores universitários brasileiros é de mulheres, você ter uma sub-representação de 8% no Congresso Nacional, na Câmara dos Deputados. E aqui na Bahia, nessa nossa chapa, nós tínhamos três mulheres candidatas, e somente eu em condição de eleição. E uma eleição muito disputada com, literalmente, homens fortes.
BN – Podemos dizer então que a senhora é a “deputada Luluzinha”, infiltrada nesse verdadeiro "Clube do Bolinha"?
AP – Talvez uma figura colorida. Interessante, né? Mas, na verdade, o jogo é muito mais bruto do que as cores dessa comparação infantil, porque nós enfrentamos o poder econômico, as corporações, os candidatos que têm figuração institucional, digamos assim, e obviamente as ideias de uma mulher já não são muito financiáveis, na política, porque nós fomos adestradas a falar mansinho e chorar baixinho, e estar atrás do grande homem. E ainda mais uma mulher que mantém vínculos com o movimento social, mantém coerência, apoia e critica, então isso tudo me coloca naquele rol dos que não têm grandes apoios financeiros. Então, o grau de dificuldade é duplo, por ser mulher e por ser coerente com a minha origem.
BN – Você tem uma história de luta acadêmica, uma militância dentro da Universidade que todo mundo conhece, e você falou agora da questão da força, do embate que houve até chegar à candidatura. O PCdoB é aliado do PT já de algum tempo. A gente sabe que há divergências ideológicas, mas caminham juntos nesse período. Mas, antes da campanha, dentro da Academia, houve um problema na UFBA entre PT e PCdoB, para a eleição do DCE, e dizem que isso se transferiu para os partidos. Como é que está, intimamente, a relação do PT com o PCdoB?
AP – Não. O PT e o PCdoB são aliados estratégicos de primeira hora. O PCdoB é o único partido nessa frente ampla, de 11 partidos, que apoia a candidata Dilma Rousseff, que esteve com Lula desde 1989. Nós estamos juntos há muito tempo. Digamos que somos primos carnais, porque viemos mesmo todos, e somos ramos da esquerda tradicional brasileira, constituída a partir de 1922 com a criação do velho Partido Comunista, e cada um se diversificou. O PT nasceu como um partido de massas. Você tem várias tendências. Ele tem o nome de partido, mas é uma federação opinativa. O PCdoB não tem esse perfil de partido único, que tem divergências internas, ênfases, mas não tem grupos. Talvez até pela sua própria dimensão. Mas acima de tudo pela sua natureza essencial, como partido de esquerda. Então, na Universidade, é obvio que ali é a manifestação juvenil das opiniões políticas. É a grande escola da política. A vida acadêmica, a vida nos grêmios. É um processo de um ensaio de ganhar e perder, de assumir posições da maior importância. E há divergências, há disputa daquele micropoder. Na minha opinião, isso é saudável. Às vezes isso resvala para práticas condenáveis, e que são espelhos do que acontece na própria sociedade.
BN – Houve brigas, invasões, depredação do patrimônio público…
AP – É. Isso ocorreu, mas não foi transferido para o mundo cá fora. E nem arranhou as candidaturas do PT, ou a minha, na Universidade. Eu que tenho a honrar de ter o eleitorado juvenil majoritário.
BN – O PCdoB baiano cresceu uma cadeira tanto na Assembleia Legislativa quanto na Câmara dos Deputados. E o partido que cresce, é legítimo, busca pleitear mais espaço no governo, ou mesmo crescer politicamente. Queria saber se o PCdoB pretende aumentar seu espaço no Governo Wagner e se, em 2012, pretende lançar candidatura à Prefeitura de Salvador, como quase ocorreu em 2008, quando a vereadora Olívia Santana chegou a ser cogitada para disputar as eleições municipais.
AP – Em relação a espaços, é óbvio, que quando você constitui uma frente, como essa que levou Wagner à vitória no primeiro turno, nós sabemos que a constituição do governo será garimpada dentro dessa frente. E isso tudo se dá com o mecanismo da proporcionalidade dessas partes constitutivas e também das competências. E eu aposto muito, inclusive, nesse segundo item. E eu espero que, nesse segundo governo, que ele tenha cada vez mais relevância. E é óbvio, o PCdoB buscará os seus espaços, a participação, mas nós não temos aquela ação predatória de ter que ter, não é? De fazer a conta e exigir, porque nós achamos que tem um projeto em construção. E nós estamos bem alocados dentro do projeto. E agora vamos ver, né? Crescemos. Vamos ver o que é possível… Nós crescemos, mas a frente também cresceu. Com a saída de Geddel [Vieira Lima] e o rompimento com o PMDB, outras forças vieram, para fazer essa conjugação que levou a vitória de Wagner no primeiro turno e, obviamente, essa matemática da política terá que se realizar.
BN – E 2012?
AP – 2012, é possível. Tudo é possível. Agora estamos em um período em que a democracia no Brasil sai da adolescência e começa a amadurecer. E uma cidade, com segundo turno, as forças políticas precisam se mostrar. Então, possivelmente, pelo menos em termo de pré-candidaturas, é certo que os nomes sejam apresentados.
BN – Nessas eleições, observamos algumas alianças políticas que não tinham nenhum caráter ideológico, como por exemplo, Rui Costa (PT) e João Carlos Bacelar (PTN). É o fim da ideologia na política?
AP – Não creio.
BN – O PCdoB ainda é comunista?
AP – Sim, sem dúvida. Sem dúvida. O partido defende o sistema de organização social do socialismo, com a ideia do fechamento, da diminuição da diferença das classes sociais, ou seja, do fechamento do leque das classes sociais. Essa é a nossa visão ideológica, de que as pessoas valem pelo que são, e não pelo que têm. E, portanto, a sociedade dos comuns. Nós defendemos isso. Mas sabemos que vivemos uma etapa de construção da democracia e, ao mesmo tempo, onde o sistema econômico é capitalista. Evidentemente, nas regras do jogo que estão postas, as alianças acontecem pelo próprio objeto da sobrevivência política de uma ideia como a nossa. E, evidentemente, eu não condeno as alianças com orientações políticas diferenciadas. Agora, contanto que compreenda-se aliança como é o objeto – põem-se e tira-se, sem matar a essência do que cada partido é. As alianças são necessárias, mas não podem depor contra a sua identidade original.
BN – Mas deve ser dureza, né, estar na mesma chapa do PP de Paulo Maluf e Otto Alencar?
AP – Olha, é evidente, mas mais duro ainda seria Jaques Wagner perder as eleições e devolvermos o Estado ao carlismo. Então essa aliança, na regra do jogo montada, o vetor é para cima. É para a manutenção de um processo de modificações políticas e acima de tudo de quebra de um controle único, que foi o que existiu durante 40 anos na Bahia. Portanto, eu apoiei a aliança. Não obstante, tenha sido eu a autora da CPI do SUS contra Otto Alencar, quando ele foi secretário de Saúde. E ele me chamava de "ararinha azul". Dizia que eu era uma ave de bela plumagem, canto mavioso, mas em extinção. Hoje de manhã ele disse “não tá em extinção”, e eu disse “é, e reproduzi votos”. [risos]
BN – Dilma Rousseff era a pessoa mais preparada [da esquerda] para assumir a Presidência da República?
AP – A natureza feminina da Dilma é mais uma quebra de preconceito no país. Elegemos um operário e agora estamos nos propondo a eleger uma mulher, em um país em que a República foi proclamada por marechais. Dirigida várias vezes por generais. Nós, mulheres, tivemos a cidadania retardada. Somente em 1932 tivemos direito a votar, e agora uma mulher pode ser eleita. Somente isso já é um grande feito. Nas outras agremiações teríamos outros grandes nomes? Teríamos. E esse foi o grande debate, porque o Lula disse “olha, o PT tem diversos nomes”. Tem Marta e Eduardo Suplicy, tem Mercadante. O PCdoB tem Aldo Rebelo. O PSB tem Ciro Gomes. Se cada um lançar o seu, o projeto está derrotado. Então, disse Lula, eu apresento o nome da ministra que, enquanto eu buscava divisas, negócios e popularidade, segurou o governo. Que já governa. Apresentou a Dilma como sua principal ministra, sua principal executiva. A Dilma não é uma palanqueira. Não mimetiza as multidões, não obstante esteja aprendendo rápido. Mas ela é a garantidora da manutenção do projeto e esse foi o acordo entre todos os partidos. Portanto, é isso que nos une. Ela é a representante da manutenção de um projeto que nós conseguimos afirmar em oito anos.
BN – Caso Dilma consiga se eleger, ela encontrará um ambiente mais favorável para governar do que Lula encontrou no Congresso Nacional. Lula, desde o início dos seus oito anos de governo, tem um programa de reforma estruturante do país – política, tributária etc. Agora, com o cenário favorável, torna-se um compromisso maior fazer essas reformas?
AP – Na minha opinião, sim. Ela própria tem verbalizado isso. Ela coloca com clareza a necessidade de reforma tributária, que eu também acho necessária, porque os municípios estão cada vez mais em situação de sufoco financeiro, dentre outras questões da própria carga tributária do país. A reforma política é uma necessidade, não é? Ela tem tudo para realizar essas reformas.
BN – O tema religião foi decisivo no primeiro turno das eleições presidenciais e também tem tomado conta da cena política nesse segundo turno. O que a senhora pensa com relação à exploração política desse tema?
AP – Eu acho dramática, atrasada, e acho que é algo que chega à beira do fundamentalismo e que isso não agrega para um país que se abriu. Para um país que, no século 21, no ano de 2010, você centrar o debate sobre os rumos do país em opções que são absolutamente recônditas e individuais. É uma exploração indevida e o uso da circunstância, de um grau de informação raso de uma parte da nossa população. E eu espero que a gente consiga superar essa fase e fazer o debate real da perspectiva do povo brasileiro, e não das questões de foro íntimo. O que temos que fazer é, cada vez mais, afirmar a laicidade do estado brasileiro. Somos um estado laico, onde é possível conviver com todas as etnias, todas as religiões, com um processo não só de tolerância, mas de respeito. Até porque eu não quero ser tolerada, eu quero ser respeitada. Infelizmente, o setor neoliberal esconde a sua natureza levando um debate que joga o país em um abismo. Haja vista as teocracias de hoje, e de sempre.
BN – A senhora se considera feminista?
AP – Sim.
BN – Jaques Wagner disse recentemente, no Hotel Pestana, que o aborto é uma prática abominável e que em momento nenhum a candidatura de Dilma clamou pela liberação do procedimento. A senhora, enquanto feminista, comunista e mulher, qual é a sua posição em relação a esse tema que tem sido tão explorado?
AP – Se chegar sangrando no hospital, prende ou atende? Eu defendo que atenda. Por isso, não se pode criminalizar algo que, no Brasil, todo mundo sabe que acontece. Mas a decisão é de foro íntimo. Por que não se legisla sobre o corpo do homem? Por que a Dilma está sendo incitada a falar só sobre o aborto? Ninguém em sã consciência defende o aborto. O aborto é uma última circunstância, que a mulher fica marcada no físico e na alma por sua realização. É preciso educar sexualmente os casais para se evitar a gravidez indesejada e a gravidez precoce. Não posso responder com sim ou não essa questão, porque nenhuma mulher gostaria de fazer o aborto, ou planeja fazê-lo. Planeja ter prole. Então, nesse sentido que é perverso esse debate. Eu defendo que, no Brasil, haja uma política de saúde que garanta atender quem chega em condição de aborto. Não é fazendo proselitismo do aborto. O que não podemos é ignorar a sua existência, porque isso é hipocrisia e eu não comungo com isso.
BN – A senhora, enquanto congressista, se chega um projeto para descriminalizar o aborto, vota contra ou a favor?
AP – Hoje não há projeto na Câmara dos Deputados sobre aborto. Houve um debate de um projeto, que morreu na Comissão de Seguridade Social, da qual não sou membro, mas eu não posso concordar com a ação fundamentalista de nominar mulheres que fizeram aborto, como no Mato Grosso do Sul, ou, lamentavelmente, criminalizar. Eu, como farmacêutica bioquímica, uma certa vez, em estágio no velho Hospital Getúlio Vargas, fui colher o sangue de uma menina que chegava com uma agulha de tricô no útero. Um dos médicos tremeu e disse – "eu não posso atender aborto. É crime". E então uma médica pegou a criança de 13 anos nos braços e atendeu. Correu o risco. Então, prende ou atende? Tem que atender. São milhões de mulheres que realizam essa prática. Enquanto não resolvermos o problema da causa, que é a desinformação, o efeito não será resolvido. Então, não se pode estigmatizar isso e eu não tenho medo desse debate.
BN – A senhora é a favor da união civil para casais homossexuais?
AP – Eu sou a favor. Acho que, no Brasil, se deve respeitar a opção de cada um. É preciso que haja pactos jurídicos para a convivência de pessoas que optam por essas conjugações.
BN – Em linhas gerais, o que a deputada Alice acha que falta para o Brasil se tornar o País das Maravilhas?
AP – [Risos] Paz social. Saúde democratizada, com acesso para todos. E acima de tudo educação para a juventude. Educação é tudo. Prioridade no investimento na educação. Todos esses temas que nós tratamos aqui, da historicidade do país à condição de cada ser humano, seria resolvido se a escola tivesse a primazia do principal espaço de vivência, como bem disse o baiano de Caetité, Anísio Teixeira, antes mesmo de Paulo Freire e Florestan Fernandes. Anísio que, por sinal, deveria ser mais homenageado.