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Entrevista: John Pilger; “A guerra mediática não se vê”

John Pilger é um afamado escritor, jornalista e documentarista australiano. Ele diz que “é demasiado fácil para os jornalistas ocidentais ver a humanidade em termos da sua utilidade para os ‘nossos’ interesses e aceitar as agendas governamentais que classificam os tiranos de bons e maus, as vítimas como dignas ou indignas e apresentam sempre ‘as nossas’ políticas como benignas, embora o verdadeiro seja o oposto”.

“O trabalho do jornalista consiste em primeiro lugar, olhar o espelho da sua própria sociedade”, explica.

“A guerra que você não vê” é a segunda grande metragem documental para cinema de Pilger numa carreira que já produziu mais de 56 documentários para a televisão.

Pablo Navarrete – Seu novo filme “A guerra que você não vê” centra-se no papel dos meios de comunicação na guerra. Gostaria de começar perguntando por que sentiu a necessidade de fazer este filme.
John Pilger: A televisão é a fonte primária de informação para a maioria das pessoas. Na Grã-Bretanha, muito do jornalismo da televisão é dedicado a criar uma espécie de mitologia de “objetividade”, “justiça” e “equilíbrio”. A BBC tem elevado esses princípios a um tipo de causa nobre e altruísta, permitindo-lhe transmitir as visões preferidas pelo “establishment” vestidas com roupagens de notícias. Isso permite-nos entender por que razão a propaganda em sociedades livres, como a Inglaterra e os Estados Unidos é muito mais eficaz do que em ditaduras. Apesar de os jornalistas “profissionais”, especialmente da rádio e da televisão, se apresentarem falsamente como uma espécie neutra, nunca a verdade terá alguma hipótese de se impor. Isto é mais claramente demonstrada quando o poder imperial – ou seja, os Estados Unidos com a Grã-Bretanha a reboque – invade países que quer controlar, independentemente do direito internacional. Esta ilegalidade é raramente um tema de referência usado na cobertura e na seleção de notícias. Eu não entendia muito bem isso no início da minha carreira. Talvez tenha sido a minha experiência no Vietname no início dos anos 60 que me ajudou a entendê-lo. “A guerra que você não vê” é um produto disso, e de me divertir a desmontar, por rotina, quase todas as notícias que leio, ouço e vejo.

PN – Numa entrevista com o acadêmico venezuelano Edgardo Lander, ele argumentava que os países que não têm meios de comunicação democráticos não podem ser chamados democráticos. Por que é tão importante o funcionamento de um sistema democrático de meios de comunicação para a democracia em geral?
JP: Eu concordo com Lander. Thomas Jefferson disse: “A informação livre é a moeda de troca da democracia”. É muito simples. Se não há livre fluxo de informações, não há democracia. Sem um público informado, a autoridade política ou empresarial – qualquer autoridade – não pode ser obrigada a prestar contas e se não presta contas, corrompe-se rapidamente.

PN – O site da organização britânica Media Lens, que analisa o comportamento dos meios de comunicação, afirma que a natureza cada vez mais centralizada dos meios de comunicação os leva a agir como um sistema de propaganda, de fato, que serve a interesses empresariais e do “establishment”. Este é um veredicto condenatório sobre o jornalismo convencional, mas é um veredicto justo?
JP: Sim, é inteiramente justo. Consideremos novamente a questão da guerra. Os Estados Unidos são um “estado guerreiro” com o sector mais estável e poderoso da sua economia dedicado ao fabrico de armamento. Essas armas, aviões e munições, vende-as a centenas de países. Vai a qualquer feira de armas, e dir-te-ão que esses armamentos têm que ser “testados no mercado”, nas guerras. As bombas de fragmentação caindo sobre pessoas no Iraque e no Afeganistão foram testados no Vietname, o napalm que foi refinado para queimar sob a pele foi testado na Coreia. Cada nova guerra é um laboratório. Grande parte das empresas de comunicação e de armamento complementam-se mutuamente. No caso da NBC, isto é explícito. A NBC é uma das maiores organizações de notícias no mundo e sua sociedade mãe, a General Electric, é um dos maiores fabricantes de armas no mundo. A mensagem contida na notícia da BBC não é muito diferente. Um estudo realizado pela Universidade do País de Gales, Cardiff, sobre o papel da BBC no período que antecedeu a invasão do Iraque, revelou que a cobertura da empresa foi muito favorável ao governo – um governo que na época estava envolvido em graves distorções da verdade, como sabemos agora, e que eles como jornalistas deveriam ter sabido naquele momento. Claro, existem algumas honrosas exceções – mas há que pensar quais são os interesses do “establishment”, e então considerar como estes se propagam direta ou indiretamente, através dos meios de comunicação, e quando digo indiretamente também quero incluir a censura por omissão. Isso provavelmente explica por quê tantas pessoas nos meios de comunicação mal podiam conter sua irritação com o vazamento do Wikileaks: como se atreve este indivíduo, que não pertence a nenhum dos nossos “clubes”, a interpor-se quanto ao direito dos meios a serem utilizados, lisonjeados e a mentir?. Em ‘A guerra que não se vê “, um antigo funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros descreve com detalhe como é fácil manipular os jornalistas do “lobby”.

PN – O filme abre com imagens chocantes do ataque de um helicóptero Apache U. S. contra civis iraquianos em 2007, que foi ao ar pela primeira vez através do site Wikileaks. Wikileaks publicou na semana passada mais de 250.000 telegramas classificados de embaixadas dos EUA, os quais desde então dominaram a agenda global de noticias. Quão importante achas o trabalho de Wikileaks e até que ponto é uma ameaça aos governos que desejam manter secretas informações sobre operações militares estrangeiras sigilosas em relação aos seus cidadãos?
JP: Mal me atrevo a usar a palavra “revolução”, mas o aparecimento de Wikileaks é realmente uma revolução. A tecnologia digital permitiu aos governos ler os nossos e-mails, mas isto também significa que nós podemos ler os deles. Será esta uma “ameaça” ao poder estabelecido? Sim, porque, novamente, a informação é poder. Confira-se esse poder a uma elite anti-democrática e o segredo perpetua-a no poder. Quando conhecemos a natureza das maquinações e enganos oficiais, então nós, o público, podemos agir. Como escreveu o historiador Mark Curtis no meu filme, “O público é uma ameaça que deve ser combatida.”

PN – 
No filme também contas como Edward Bernays inventou o termo relações públicas e foi um pioneiro do moderno sistema de propaganda. Para alem disso mostras como o governo dos EUA utilizou as técnicas inventadas por Bernays para recrutar cidadãos dos EUA para participar da Primeira Guerra Mundial. Governos como o dos EUA continuam usando essas técnicas ainda hoje, e em caso afirmativo, podes dar alguns exemplos concretos de como isso funciona?
JP: Edward Bernays dizia: “A hábil manipulação das massas é um governo invisível que representa o verdadeiro poder neste país.” As mesmas técnicas ainda são usadas, tais como a criação do que Bernays chamava de “falsa realidade” e os rituais de patriotismo que se dedicam a justificar a guerra. O que é diferente nos dias de hoje é que a propaganda não está funcionando. Olha para o pânico que mostram as respostas dos governos em relação às revelações do Wikileaks. As guerras no Iraque e no Afeganistão tiveram uma forte oposição, não só em todo o mundo, mas também dentro os EUA e Grã-Bretanha. A Internet deu às pessoas uma ferramenta para saber o que está acontecendo, mesmo sem ligar a TV e assistir ao noticiário. Eu escrevo uma coluna para o “New Statesman”, que tem uma tiragem modesta. Mas uma vez na Internet, pode alcançar uma audiência de vários milhões.

PN – Por último, qual seria a melhor maneira de fazer a cobertura da guerra pelos meios de comunicação massivos menos subserviente aos interesses do governo? Tens alguma esperança sobre a capacidade da Internet para fornecer informações alternativas sobre os grandes acontecimentos, como a guerra?
JP: Os meios de comunicação não vão mudar enquanto não mudar a sua estrutura. Um jornal de Murdoch, ou um dos seus canais de TV sempre refletirão os interesses predatórios de Murdoch. No entanto, jornalistas e organizações de rádio e TV coletivamente têm poder, bem como o público interessado. Eu gostaria de ver estabelecido um “quinto poder”, em que jornalistas, os seus professores em escolas de jornalismo e o público em geral se unam para começar a mudar a prática jornalística a partir de dentro. Durante a invasão do Iraque, houve pequenos motins dentro da BBC, mas não estiveram coordenados. O potencial está aí. Quanto à Internet fornecer informações alternativas sobre a guerra, isso já está acontecendo. A maioria das melhores histórias sobre o Iraque foram publicados na web – por aqueles que, como Nir Rosen e Dahr Jamail, e “jornalistas cidadãos”, como Jo Wilding. E já está acontecendo onde é provavelmente mais importante: mesmo nos centros de poder, onde, aparentemente, quase tudo está a ser vazado e publicado na web, e esperemos que isso continue por muito tempo.

* Entrvista de Pablo Navarrete; editor de www.alborada.net, um site sobre política, meios de comunicação e cultura na América Latina

Fonte: ODiario.info – tradução de Guilherme Coelho