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Marco Albertim: Zé Inácio, padre Karl e Bento

Zé Inácio não se deu por sentenciado, mas Aparecida mirou a palidez de seu rosto e distinguiu o enxofre da morte. Ele trouxera na bagagem o sinal da morte. Não era tão tarde quando a porta foi aberta. Não era tão tarde, e as casas e seus moradores socorriam-se de agouros. Antes que o relógio da matriz batesse às dez da noite, já não se via porta nem janela abertas.

Por Marco Albertm*

Aparecida, cujo nome viera de cismas, abriu a porta e a fechou com força. Zé Inácio entrou com a mala de roupas. Ouviu, junto com ela, uma coruja corvejando no voo rasante.

O padre e o diácono já o esperavam, sem rezas, com o sentido em ardil de jagunços.

Aparecida fora informada da vinda de Zé Inácio. Nada dissera, mas na cozinha matutou a sorte de ter que cozinhar e lavar para mais um. Recolheu-se ao aposento.

Os dois reuniram-se com Zé Inácio, em volta da mesa, sentados, sob o encosto alto das cadeiras. Não foram acesas todas as luzes, só a do único lustre com a boca para cima, com teias de aranha. Não deu tempo Aparecida reconciliar-se com os santos. Foi chamada pelo padre para servir mel de cabaça ao recém-chegado. Despejou, ela, o mel na xícara e trouxe o vaso de farinha para ele fazer a mistura. Zé Inácio não a olhou. Ela certificou-se do agouro.

Podia ficar na cozinha, no trato de temperos e ervas, que ninguém a estranharia. O padre não a censurava, e o diácono só zombava de suas crenças no corvejo das corujas. Aparecida encheu um copo com água, engoliu com medo de moer as vísceras. Foi deitar-se.

– Reparei no modo como ela me deixou entrar – confessou Zé Inácio. – Parece que ela sabe quem eu sou. Está desconfiada?

– Desconfia de todo mundo que ela não viu benzer-se com a água do batismo. Ela é assim mesmo – tranquilizou-o o padre.

– Deve ter ouvido a coruja. Quem está na rua com a coruja voando, se acompanha da morte – explicou-lhe o diácono.

O quarto onde Zé Inácio foi instalado, vizinho ao da criada, tinha uma janela com fendas para cima. Não podia, ele, ver quem se encostasse à parede externa, visto ser uma casa de esquina. Mas ouviria conversas, passos de estranhos. Só de estranhos, porque toda a cidade, um nadinha de gentes, não tinha interesse em ouvir conversas da casa paroquial.

Zé Inácio dormiu sem se dar conta da janela; não seria o caso, posto que chegara sem que ninguém, além dos da casa, reparasse nos seus passos medidos. Só Aparecida sentira cheiro de enxofre, mas os urdumes dela eram contidos pelo padre.

Padre Karl e Bento advertiram-no do risco de suspeitas, se passasse os dias no remanso. Foi acordado antes de o dia nascer. Aparecida, com um pano no pescoço, coara-lhes café, assara pão com manteiga. Nutriu-os para o frio no caminho da roça do mutirão. Em Zé Inácio, o nevoeiro da madrugada infundiu confiança; sentiu preparo para os vinte e cinco anos que os homens da polícia queriam interromper. Teria que segurar a enxada, fazer a limpa da terra.
Bento sabia que recrutara um inábil, e antegozava o prazer de engessar com calos e destreza, as mãos do ex-estudante.

O padre ficou em casa. Não tinha o costume de ir à limpa. E não convinha sair deixando Aparecida sozinha, depois de ter preparado o café para um estranho. Velha, rabugenta, ele a espreitava. Os dois, Zé Inácio e Bento, seguiram pelo oitão da casa.

Distantes das casas, subiram e desceram ladeiras cercadas de mato alto. Andaram duas léguas. Por fim, uma clareira. No meio, uma casa de massapé com um terraço numa lateral. Dez homens os esperavam para começar o trabalho. Zé Inácio soube do nome de todos, sem apertar-lhes as mãos. Não eram brutos, e não tinham modos urbanos. Achou bom porque não apertariam sua mão sem calos de enxada.

As ferramentas foram tiradas de dentro da casa.

Cada camponês, segurando o cabo liso da enxada, tinha o molde das mãos no cabo. O rosto de Zé Inácio cobriu-se de vergonha, de vergonha e de inveja. Os homens não o repararam, e cada um tinha um riso escondido no canto da boca.

Bento achou-se na obrigação de instruir Zé Inácio.

Às 11 horas as mãos de Zé Inácio não tinham calos, mas ardiam vermelhas. Ele aproveitava quando ia beber a água da moringa, para distender os dedos. A moringa, fria, na sombra do terraço, convidava-o a ficar. Não fora preso, e teria sido melhor se fosse, caso lograsse os outros com razões de cansaço.

Numa hora, Bento consolou-o:

– Se você quiser descansar no terraço, pode ir. No começo todos estranham.

– Não – envergonhou-se.

Ao meio-dia, o sol a pino, foram para o terraço. Os camponeses estavam suados, Bento tinha o rosto vermelho; Zé Inácio, suado, vermelho, curvara-se. Era a primeira vez que bebia água da moringa, bebeu-a como um manjá. Sentaram-se, encostados à parede. Os mais velhos, sem dores nas costas, encostaram-se às colunas de madeira de apoio à coberta do terraço. Zé Inácio estudou-os com desgosto de si, do passado que desperdiçara na adivinhação de em que dedo poria o anel de formatura. Se tivesse que lhes dizer por onde andara nos dois últimos anos, nenhum dos juízos ali se subjugaria aos propósitos do pequeno-burguês que tivera em Dostoieviki a receita do conhecimento dos sentidos.

Bento levantou-se, entrou e saiu da casa com uma bíblia na mão. Abriu-a na página em que deixara marcada com uma fita vermelha. Se pusesse uma estola sobre os ombros, não o estranhariam, tamanho era o seu perfil de clérigo. Antes de abrir a marmita para comer, soprou uma oração na página aberta. Os homens já estavam comendo, com exceção de Zé Inácio, que seguiu os gestos do outro com os olhos. Estava com mais fome do que todos, e imaginou quanto tempo duraria até contrair o instinto de comer sem contrariar a liturgia da hora.

Comeram a comida que cada um trouxera de casa. Zé Inácio aprovou o feijão preparado por Aparecida. Não havia gosto de incenso, como o rosto da criada fizera crer. Fiou-se mais no senso de medida do diácono, do que nas crenças da criada.

Os homens tinham o sentido no leirão aberto para o plantio. Bento não crescera ali, mas se acostumara no culto à batata parida da terra. Zé Inácio queria que o tempo esgotasse seu passado da memória, como toda lágrima sumida do rosto.

– A terra vai se fechar no clarão do relâmpago – disse o camponês mais velho. Tinha sob o olho direito uma cicatriz vertical. Não havia certeza se fechara ou estava aberta, e expunha um traço preto no corte menor que uma polegada. Diziam que era um espinho.

– Por quê? – quis saber o que estava ao lado, mais novo.

– Depois da chuva vêm o relâmpago e o trovão. É o aviso para a terra se fechar que ela já foi semeada. A terra fala com a chuva. O trovão e o relâmpago fazem a celebração.

– Você conversa com a terra, Zé Raimundo? – interveio Bento. Achara que o diálogo poderia constar da marcha dos hebreus.

– Não. Mas a terra me chama para conversar com ela. Ela tá pedindo ajuda. Eu abro o leirão e faço a limpa. Ela agradece. Eu devolvo fincando a maniva na terra.

A conversa durou. Alguns dormiram. Do sudeste soprou um vento fecundo, os homens se sentiram pagos. Quando o sol arribou, deixando a terra livre para o sereno, Bento abriu a bíblia para ler. Leu em voz meia, um trecho sobre os hebreus à procura da terra.

– Os hebreus plantavam mandioca? – perguntou Zé Raimundo.

– Não sei, Zé – respondeu Bento. – Provavelmente. A mandioca é talvez a primeira raiz com que o homem se alimentou.

– Eles limpavam a terra, como a gente? – perguntou outro.

Bento, achando-se tão padre quanto o padre Karl, inculpou o uso da terra pelos latifundiários:

– A terra era fértil em toda a sua extensão. Havia terra para o cultivo de sementes e terra para o gado comer. Não era preciso destruir a lavoura para a solta. Havia espaço para todo mundo.

– Não tinha jagunço? – insistiu o outro.

– Tinha. Os hebreus andaram quarenta anos para ter uma terra onde plantassem e criassem. Houve seca, foram para o Egito. Voltaram para a sua terra, a Palestina, e foram perseguidos pelos filisteus, os jagunços…

Bento, falando, sentado, sem oponentes, com a ajuda do vento e da bíblia de sua confiança. Zé Inácio calado, fincando-se nos gestos de cada um.

Depois das cinco horas, o negrume cobriu-os como uma ferrugem. O instinto da volta para casa impacientou-os. Levantaram-se. As enxadas, recolhidas no interior da casa. Bento guardou a bíblia em cima de sua enxada. Zé Inácio os imitou. Andaram juntos na picada aberta entre o mato. No alto, sem a mata, dividiram-se em grupos de dois, três. Zé Inácio e Bento seguiram no rumo da casa paroquial.

Lá, padre Karl já tinha a roupa para a noite. O cabelo molhado fora penteado, e ele recendia a colônia de patchuli.

Zé Inácio entrou no banheiro. Aparecida picou-se, curiosa, de como o homem que trouxera um rastro de morte, se portara entre camponeses incréus. Não acreditava que os homens mateiros fossem capazes de remedar uma oração, embora ocultasse uma simpatia por suas crenças na chuva e no relâmpago.

O resto da semana – Zé Inácio chegara na segunda-feira – seguiu-se na rotina da roça. Aparecida não pôs fim às cismas. A mando do padre, extraiu a tinta da casca do barbatimão, e untou nas bolhas estouradas das mãos de Zé Inácio. No sábado ele sentiu-se aliviado, urdindo-se com as palmas das mãos duras para o recomeço da limpa.

No mesmo dia, o padre foi ao passeio de costume na feira de Solânea. Na rua tomada de barracas de lona, o cheiro de legumes misturava-se ao do perfumes de mulheres recém-saídas do asseio. Putas de todas as idades juntando-se a roceiros, feirantes e outros mascates. Espreitando o apurado, intuíam-se sócias do negócio cujo dono lhes acenara com um donativo, inda que módico, em troca do coito. Os encontros, nas suas casas, tinham por testemunhas, filhos sem pais e avós cúmplices da regra.

O padre rezava por elas, e não lhes dava apoio aberto no comércio promíscuo. Assistia ao ir e vir de todas, sem imiscuir-se no regateio de preços. Quase não o percebiam, porque se vestia com o brim usado pelos feirantes, e calçava chinelos de couro. O que o distinguia dos outros, era o sotaque alemão com pouco domínio do português. Gentil no riso, nos cumprimentos, convencera-se de que o adjetivo “gostosa” convinha ser a melhor resposta a quem lhe desse bom-dia, boa-tarde…

O delegado opunha-se ao trottoir, e distinguia no procedimento dele o modo de acoitar a putaria no passeio.

– Padre descarado! Nem usa a batina…

Resolveu, o delegado, pôr fim à diversão das mulheres. Mandou o comissário, junto com três soldados, dar a ordem de dispersão. As mulheres se recolheram juntas, caladas, queixando-se sozinhas, longe dos polícias.

– Tem graça!… Mandar na rua! Nem o prefeito!

– Se me proibir na frente da minha casa, eu jogo o penico de mijo em cima!

O padre quis intervir. Mas lembrou-se do que ouvira do bispo:

– Não se meta em rusgas de qualquer autoridade local, principalmente na rua. A autoridade da Igreja pode ser questionada.

Correu, ele, para a casa paroquial. Contou ao diácono.

– Diga-lhes que as porrtas da igrreja estão aberrtas parra elas. Venham como crristãs e façam o que quiserrem quando saírrem da igrreja.

Zé Inácio ouviu, quis aplaudir. Acompanhou Bento à vila onde as mulheres moravam.

Tinham se reunido, quaseinsurretas, na frente de uma das casas. Com a aproximação dos dois, calaram-se. Zé Inácio e o diácono não tinham semelhanças com polícias. Elas suspeitaram de ajuste entre o céu e a terra.

– O padre não é a favor da prostituição, mas não é contra as prostitutas. Estou aqui em nome dele. Vocês podem frequentar a calçada da frente da igreja, até entrar na igreja, portando-se com fé. Ninguém vai importunar vocês na casa de Deus. Depois, do lado de fora, sigam com quem quiserem.

Houve gritos, apoios. Zé Inácio aplaudiu, pediu a palavra:

– Não vão para a cama com os jagunços! Eles são da mesma laia da polícia que tirou vocês da rua!

No fim da tarde, as mulheres se retocaram. Seguiram para a Matriz, mudas, com um drama litúrgico no rosto. Algumas entraram, rezaram. Não pediam para sair da prostituição, queriam recursos para comprar na feira a comida que minguara na despensa. Outras ficaram fora, encostadas numa das quatro colunas de cantaria. Fingiam-se de matronas ungindo-se do cheiro de óleo consagrado vindo da igreja.

Da janela da casa paroquial, o padre, o diácono e Zé Inácio espiavam; os três, o padre no meio, em pé, dentro. Do outro lado da rua, oculto no tronco de uma acácia distante da igreja, o delegado enxergava as mulheres e os três. “Por certo não é a Santíssima Trindade…”

Antes que os sinos tocassem o ângelus, os feirantes fecharam os negócios, encaixotaram o que restara. Com a mesma roupa – porquanto muitos, casados, se fossem para casa se trocar, as esposas não os deixariam sair – foram para a igreja, para o lugar reservado às mulheres. Dali seguiram, cada um com a escolha feita antes da providência do delegado, para a vila.

Até então, a razão de festa era uma prenda dada por comerciante abastado a uma das putas. Antes que o sino da igreja repicasse às dez da noite, os homens queriam celebrar o lucro do dia – o mesmo dos de outros negócios. Sentiam-se tão alforriados quanto as mulheres.

Bento e Zé Inácio, olhando de longe, meios que entretidos com a coreografia mundana.

Apreciavam o efeito da alforria do padre Karl.

– Não há com tirá-las dali? – assuntou Zé Inácio.

– Já perguntei isso ao padre. Ele não teve resposta.

– A culpa não é sua nem dele. A culpa é do mundo que ainda não deu resposta.

– Só o delegado tem uma resposta. – Bento quase se confessou impotente.

– Não. Nós estamos errados falando assim. Não temos a solução para o problema, mas hoje vocês deram uma resposta. Elas estão comemorando por isso. Olhe, aprecie o resultado de suas palavras entre as putas.

Só Aparecida não teve motivos para se preocupar com a vida das mulheres daquela noite em diante. Pôs a mesa como de costume, balbuciando agouros, entrevendo o diabo nas sombras. Rezava além da conta, ajoelhada sob a imagem da Padroeira que o padre lhe dera. Ele benzera a imagem, ela se dizia desobrigada de ajoelhar-se em banco da igreja.

Na roça, Zé Raimundo foi o primeiro a comentar a desocupação do pátio da feira pelas mulheres. Era casado, tinha filhos, dois netos. Não presenciara o episódio, mas o filho solteiro assistira a tudo. O padre, conforme ele, corou a face com o fogo da raiva quando vira as putas tangidas feito gado.

– Se o padre tivesse com a batina, era um tição comprido com o rosto incendiado. Nunca vi padre ter raiva. Mas me aliviei das raivas que tive na vida, quando meu filho me contou a reação dele.

Bento riu. Zé Inácio apoiou-se no cabo da enxada para fazer o mesmo. Às dez horas o sol não lhes dava trégua, e o costume proibia-os de interrupção. Zé Inácio mirou os olhos no sol, fechando-os, abrindo-os. Achou-se capaz de desafiar o calor nutrindo-se na energia, na indiferença dos outros à quentura da terra.

Bento rira e nada dissera. Zé Raimundo intrigou-se.

– A bíblia conta que Cristo tangeu as putas da igreja. As putas e os comerciantes. O padre de Solânea abriu as portas da igreja para todas elas. Teve muita coragem. Contrariou o delegado e o povo que frequenta a igreja.

Zé Inácio aproximou-se de Bento. Sugeriu que continuasse a pregação na trilha da conversa com as mulheres.

– A bíblia não defende a apartação de mulheres que usam o corpo como meio de vida. Cristo contrariou-se com a usura, com o comércio desigual entre ricos e pobres. Por isso expulsou os vendilhões abrigados na casa de orações. Madalena era pecadora, mesmo assim teve o apoio de Cristo. A multidão que jogou pedra em Madalena, é a mesma que expulsou as mulheres do pátio da feira.

Zé Raimundo olhou o diácono, duvidando se o homem que tinha na voz a defesa de putas, resistiria ao convite de deitar-se com uma delas. Perguntou:

– Se mal pergunto: vosmecê já deitou com mulher da vida?

– Não.

– Por que defende a putaria no meio da rua?

– Não defendo a putaria, mas defendo as putas…

– Não entendo… – insistiu Zé Raimundo.

Bento olhou para Zé Inácio. Zé Inácio encorajou-o, fincou com força a navalha da enxada na terra…

– Há quanto tempo você trabalha no seu leirão, Zé? – inquiriu Bento.

– Faz cinco anos.

– Tudo que sai daqui é dividido entre todos, mesmo que o leirão de um renda menos do que o restante. Imagine se você comerciasse suas batatas com um estranho, sem antes dividir com os outros. O que acha que devíamos fazer com você?

– Me expulsar daqui!

– Você seria expulso. Mas teria que ser ouvido por todos nós para fazer a sua defesa, e poderia até não ser expulso da roça.

Zé Raimundo nunca se imaginara como objeto de inquérito. Apoiou-se na enxada, ajuizando o chão lavrado por ele. Intuiu que a terra parideira de frutos era fonte de cobiça.
Bento continuou:

– As prostitutas nunca foram ouvidas, a não ser por elas mesmas. As portas da igreja foram abertas para elas. Agora têm como se defender. A igreja de Solânea vai ouvir o reclamo delas, e vai ensinar o evangelho dos pobres.

No fim do dia, dispersos, Zé Raimundo seguiu para casa. Morava com os filhos, noras e netos. O filho que lhe narrara o procedimento do padre, já o desancara de pancadas por um nada. Em todas as vezes, lembrou-se, viera do leirão com quase nada de batatas, de inhames.

– Luiz, chegue cá – Luiz tinha vinte anos, devia obediência ao pai. – Não quero que você vá mais à vila das putas.

– Por quê?

– Pra não fazer mau juízo das moças…

À noite, padre Karl reuniu-se com o diácono e Zé Inácio. Aparecida serviu-lhes café. Propôs, ele, que fosse doada uma máquina de costura para a casa de uma das mulheres. Bento e Zé Inácio fariam reunião com elas. Diriam-lhes que o resultado da venda das costuras, o pouco de dinheiro que dali rendesse, seria dividido. Quem soubesse costurar, seria a primeira a usar a máquina, e as outras espiariam para aprender.

– Não vai dar para sustentar todas com só uma costurando. Enquanto não têm outra máquina, o que farão?… – conjeturou Bento.

– Farão uso da igreja! – sentenciou Zé Inácio.

O padre riu, riu porque o acumpliciara.

– Sem objeção – sujeitou-se.

– O dinheiro para comprar a máquina, como vamos obter? – quis saber Bento.

Zé Inácio, feito a enxada que enfiara na terra, fincou sua instigação:

– Com o dinheiro recolhido na sacolinha, nas missas.

– Sem objeção.

Aparecida recolheu as xícaras do café. Quis opinar, mas o padre a educara no silêncio submisso às tramas da casa paroquial. Pôs as xícaras na bandeja, virou-se, segurando-a com uma mão; com a outra, fez o sinal da cruz. Na cozinha, lavou as louças como se estivesse purgando-as de inculpações.

A máquina de costura foi comprada depois do que fora arrecadado em três missas. A loja deixou-a no endereço indicado por Bento.

– Você deve ir no carro da loja entregar a máquina – dissera Zé Inácio a ele.

– Não faz diferença. Elas sabem que em toda a Solânea, ninguém a não ser nós é quem somos capazes de fazer a doação.

– Quando descobrirem que foi com o dinheiro tirado da sacola, não vão mais censurar as beatas que as condenam ao fogo do inferno. A mulher do delegado é beata.

– E o dinheiro que ela pôs na sacola veio do salário do delegado.

– A máquina de costura foi comprada com o dinheiro do delegado, do comissário, do juiz, do promotor, do prefeito, dos vereadores… – Zé Inácio tramara contra militares graúdos, agora se comprazia em cavoucar a arraia-miúda do poder.

O padre instruiu-lhes sobre o que deveriam dizer às mulheres. As reuniões, nas segundas-feiras à noite, juntavam, além delas, velhas e meninos. O ajuntamento, na frente de uma das casas, era iluminado pela luz da própria casa. Não havia luzes na rua.

Bento, a caminho de vestir uma batina escura, crera-se com o dom da palavra; usava-a incitando as putas a se remir na terra, não no paraíso incerto…

– Diga-lhes que a revolução social é possível, e sem elas a revolução social não pode haver – instigou-o Zé Inácio.

O que fosse dito pelos dois, inda que pregassem a reabilitação da virgindade, seria aceito por elas. Algumas se reservavam um tanto de pressentimento. Mas as velhas, sem simulação, de biocos nos ombros, diziam-lhes que noutro tempo houvera mortes por fome, enterros em redes. As desconfiadas se punham a acreditar.

– O céu existe e não há como medir o seu espaço, nem como dizer onde fica. O que importa é acreditar na vida, não na morte. Quem assim faz, não tem medo da morte. A bíblia fala no céu para os justos, fala também que pode haver céu na terra.

Nenhuma quis apartear o diácono. Tinham vontade e timidez e mantinham-se caladas.

Mais duas reuniões, e todos já se tratavam pelo nome.

A calçada da igreja continuou sendo o passeio para o trottoir. As raparigas entregavam-se com fé, envaidecidas com o vestido costurado pela amiga paga com o dinheiro ganho a cada coito.

Zé Raimundo, chamado por Bento, foi às reuniões.

– Tô vendo o que não quero crer: rapariga cruzar as pernas e não mostrar a boceta.

Numa segunda-feira, antes da reunião, Aparecida insistiu para Zé Inácio não tomar o café de costume.

– Vai dar a ele chá-de-água-benta? – brincou Bento.

Ela preparara para Zé Inácio chá de casca de romã. Não se desfizera da impressão de morte no passo miúdo dele. Temia que padre Karl ou Bento fosse palpado pela sorte de Zé Inácio. E se protegera, quando o vira entrar no quarto, com um jarro de louça contendo ramos de comigo-ninguém-pode. A velha, com autoridade de curandeiro, disse-lhe:

– Beba, Zé Inácio. É para abrir seus caminhos. Se não fizer bem, também não faz mal. Já curei uma sobrinha com mau-olhado, com chá de romã.

Zé Inácio e Bento convenceram-se às dez da noite, quando a reunião terminou. As mulheres lhes disseram que a costureira queria festejar o aniversário, dela, com os dois bebendo vinho. A bebida fora comprada com a renda da máquina de costura; a bebida e a farinha de trigo usada para fazer o bolo.

Não houve como negar.

– Aparecida tinha razão. Ela conseguiu abrir o caminho para nós dois – disse Zé Inácio. Bento riu.

Dali a uma hora, depois de tomar o último gole de vinho, olhou para cima. Viu uma coruja em voo rasante. Ela corvejou.

– Fasta, invejosa! – increpou a costureira.

Depois, houve um silêncio.

Zé Inácio sentiu que lhe tocavam com os dedos num de seus ombros. Virou-se, viu-se de frente para o delegado.

– Seus documentos, rapaz!

*Marco Albertim é escritor e jornalista. Ganhador do Prêmio Nacional Osman Lins de Contos. Menção honrosa dos Prêmios Literários da Cidade do Recife, com o livro Um presente para o papa e outros contos. Integra as antologias de contos Recife conta o Natal e Panorâmica do conto em Pernambuco. É colunista do Vermelho.