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Haiti elege novo presidente sem soluções à vista

Na última quinta (21) o cantor Michel Martelly foi anunciado oficialmente como o novo presidente do Haiti. Com 67,6% dos votos, ele venceu uma eleição marcada por irregularidades, confrontos e uma altíssima abstenção. Bem antes do resultado final do pleito ser divulgado, autoridades locais, ao lado de organismos internacionais, já apontavam "o triunfo da democracia" no país. Tudo indica, contudo, que o Haiti que sai das urnas é mais digno de cautela que de comemorações.

Estima-se que apenas cerca de 25% dos eleitores haitianos compareceram às urnas – nos dois turnos – para escolher o novo governante do país. Na disputa anterior, de 2006, o atual presidente René Préval foi eleito em um primeiro turno que contou com a presença de 62% dos votantes.

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Mais que representar a distância existente entre a população haitiana e o processo eleitoral, a baixa participação de agora sinaliza a fragilidade da soberania popular no país e a escassa legitimidade que pode ter o futuro governo encabeçado pelo popular cantor Michel Martelly.

Sem lenço, sem documento

Em um país devastado pelo terremoto de janeiro de 2010, a destruição de documentos e registros eleitorais pesou na alta abstenção, assim como o descrédito da população em relação à política, que até então não serviu para tirar do país o rótulo da miséria. Atualmente, cerca de 80% da população, estimada em oito milhões de habitantes, vivem com menos de US$ 2 por dia.

Além disso, o processo eleitoral foi tumultuado do começo ao fim. Logo de início, vários partidos – entre eles, o popular "Famni Lavalas", do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide – ficaram fora da disputa, por não atenderem aos critérios necessários exigidos pelo Conselho Eleitoral Provisório.
 

Após uma campanha repleta de denúncias, o resultado do primeiro turno terminou sendo revisto, por indícios de fraudes. O candidato governista, Jude Célestin, foi retirado da segunda etapa do pleito, depois que protestos violentos tomaram o país e a comunidade internacional fez pressão para que, na cédula, estivessem os nomes de Marilande Manigat e Michel Martelly.

Diplomatas apontam a estranheza desta eleição. Desde 1990, quando foram realizadas as primeiras eleições livres após a ditadura dos Duvalier, a disputa sempre era concluída no primeiro turno – e com vitória das forças de centro-esquerda. Desta vez, o candidato que representava esse grupo – Celestin – sequer concorreu na segunda etapa.

O novo presidente

Sem experiência política, Martelly, o candidato do partido Resposta Campesina, tem 50 anos e é de uma família de classe média. Morou durante vários anos nos Estados Unidos e, durante a campanha, adotou o discurso da renovação e da união, pautado sempre pelo orgulho nacional, mas sem aprofundar claramente o seu projeto político.

De acordo com a Folha de S. Paulo, ele foi assessorado por uma experiente empresa de marketing com sede em Miami, que já trabalhou para figuras como John McCain e Felipe Calderón.

Nos resultados iniciais do primeiro turno, realizado em novembro do ano passado, Martelly havia ficado em terceiro lugar. Mas, diante da revisão dos números, ele terminou substituindo o governista Jude Célestin.

Famoso pelo estilo extravagante e por vezes agressivo, ele foi acusado de incitar manifestações violentas durante o pleito. Causou polêmica ao defender a reconstrução das Forças Armadas, desativadas em 1995, depois de décadas de uma atuação marcada por abusos. E é controversa sua conhecida relação com setores do duvalierismo. Durante a campanha, ele chegou a dizer que poderia ter como assessor o ex-ditador Jean-Claude Duvalier (Baby Doc) – cujo retorno ao país, às vésperas da eleição, contou com seu apoio.

Também circulam pelo país rumores de seu envolvimento com forças que tramaram o golpe contra o então presidente Jean-Bertrand Aristide, em 1991. Uma boate gerenciada por Martelly em Porto Príncipe era ponto de encontro de militares haitianos, que tramaram contra o governante.

Interesses forasteiros

Para muitos, Martelly é, na verdade, um homem de direita, herdeiro dos Duvalier, e representaria, portanto, um retrocesso para o Haiti. "Há uma dificuldade de se entender quem é esse personagem. A imprensa ainda não se deu conta. Ele não é um Tiririca do Haiti. Todo o seu discurso vem do duvalierismo. É uma espécie de cavalo de troia modernizado", diz um diplomata.

E o que teria levado o Haiti a seguir esse caminho? Muitos apontam – mais uma vez – uma forte interferência estrangeira, mal que tem assolado o país desde que Cristóvão Colombo atracou em suas terras. A nações como os Estados Unidos interessariam manter a ocupação no Haiti e ter por lá um governo favorável às suas políticas. "É uma volta a 1957 (ano em que o presidente François Duvalier foi eleito), mas com meios mais sofisticados de manipulação das massas", adverte uma fonte.

Antes de proclamados os resultados finais do pleito, Martelly viajou para uma visita de três dias aos Estados Unidos, onde se reuniu com a secretária de Estado Hillary Clinton (na foto ao lado).

Em uma conta rápida, é fácil perceber que, se obteve cerca de 68% dos votos em uma eleição em que apenas algo em torno de 25% participaram, Martelly é o candidato eleito por 17% dos haitianos. No Parlamento, isso se faz sentir de forma mais dura, uma vez que seu partido terá apenas três dos assentos na Câmara, em um total de 99, e nenhum espaço no Senado. Daí o discurso conciliatório que o novo gestor tem adotado desde sua vitória.

Resta saber como será a convivência entre essas forças, num país em que correntes políticas historicamente sempre se enfrentaram, abrindo caminho para a tutela estrangeira, enquanto o povo pagava o preço de ser o país mais pobre das Américas.

Por Joana Rozowykwiat
Da Redação