“É preciso fortalecer as instituições haitianas”, diz embaixador
O embaixador do Haiti no Brasil, Idalbert Pierre-Jean, prevê que o cenário político delineado nas urnas exigirá do novo presidente, Michel Martelly, muita capacidade de negociação. Sem maioria no Parlamento, o governo terá que fazer acordos até para indicar o primeiro-ministro. Nesta entrevista ao Vermelho, Pierre-Jean fez ainda um apelo ao mundo, para que ajude não só na reconstrução física do Haiti, mas também no fortalecimento de suas instituições.
Publicado 25/04/2011 10:35
Na conversa com a reportagem do Vermelho, na sede da embaixada em Brasília, Pierre-Jean minimizou o baixo índice de participação no pleito – menos de 25% dos haitianos foram votar – e a falta de experiência política do novo presidente. “Ele é um ícone!”, repetiu o embaixador algumas vezes durante a entrevista, referindo-se à bem sucedida carreira de cantor de Martelly.
O embaixador falou ainda do desafio de levar adiante a reconstrução do Haiti, não apenas para tirar o país dos escombros, mas também porque esse processo deve gerar empregos, aumentar o poder aquisitivo da população e aquecer a economia haitiana.
E mandou um recado à comunidade internacional: “Não é preciso fazer apenas casas, pontes e ruas. Temos que trabalhar para fortalecer as instituições, porque o déficit do Haiti não é só econômico, é institucional”, disse, defendendo que o governo haitiano também precisa de recursos.
Hoje, a maior parte da ajuda humanitária enviada ao país, está nas mãos de ONGs, que não têm uma ação coordenada e nem se submetem ao controle do governo. Desta forma, as verbas não reforçam a estrutura do Estado haitiano.
Pierre-Jean discordou daqueles que consideram que as forças da Missão das Nações Unidas no Haiti (Minustah) representam uma ocupação militar no país. Ele defendeu a presença das tropas, elogiou sua atuação, mas avaliou que podem fazer mais nas áreas civil e social. “a Minustah já faz bastante na área de segurança, mas poderia participar mais, nas áreas civil e social. Precisam-se de mais engenheiros, mais técnicos”, diz.
Portal Vermelho: Que cenário o senhor acha que sai das urnas no Haiti?
Idalbert Pierre-Jean: É complicado definir hoje esse cenário, por muitas razões. Primeiro, porque há uma situação grande de precariedade, que será muito difícil para o novo governo e seria para qualquer governo. Já foi muito difícil para o governo que está saindo.
Em segundo lugar, os preços das matérias primas estão subindo muito no mundo. Isso é bom para os países exportadores, como Brasil, mas é ruim para os importadores, como o Haiti. E se os preços sobem no Haiti, com todos os problemas que o país já tem, é uma carga grande e creio que será difícil. Por isso precisamos tanto da cooperação de outros países.
E uma outra questão é a reconstrução do país, que não depende só do Haiti. Os recursos não passam pelo governo. É preciso que a comunidade internacional entenda que o governo também precisa de recursos .
Sabemos que daqui a alguns meses teremos uma nova temporada de furações. É importante ter em conta que é preciso colaborar com o governo e ajudá-lo a atuar frente aos problemas. Esperamos que a reconstrução comece, até porque pode ser um palanque, ser uma boa força para o governo que vai começar. A reconstrução também cria empregos, aumenta o poder aquisitivo.
Vermelho: Mas e quanto ao cenário político? O presidente eleito Michel Martelly tem o apoio de que forças, de que partidos? Governará com quem?
Idalbert Pierre-Jean: Martelly foi e é um ícone popular, em especial, entre a juventude. Com isso, ele tem a sua própria popularidade. É muito difícil dizer com exatidão que setores o apoiam. Ele teve um apoio importante em quase todos os setores. Afinal, é um ícone! Todo mundo canta e dança a música dele.
Vermelho: Mas e quanto aos ex-presidentes, Jean-Claude Duvalier e Jean-Bertrand Aristide, e ao atual, René Préval? Quem eles apoiaram? Que peso eles tiveram nesse segundo turno?
Idalbert Pierre- Jean: Não acho que tiveram peso. Quanto a Duvalier e Aristide, não li nenhuma intervenção nem de um, nem de outro. Duvalier não participou publicamente, não está bem de saúde e ainda tem problemas com a justiça. Aristide chegou ao Haiti dois dias antes da eleição e falou apenas de exclusão, porque o seu partido – Família Lavalás – foi expulso da disputa. A popularidade do presidente Martelly estava acima de um apoio específico tanto de um quanto do outro.
O Préval também não apoiou ninguém publicamente no segundo turno, porque tinha um candidato (no primeiro turno, Jude Celestin), que perdeu. Então não podia.
Outra coisa que Martelly tem a seu favor é que ele ganhou sem o apoio de um ou de outro. Agora, como ele vai estruturar o seu governo, é difícil dizer. Segundo a Constituição do Haiti, a configuração política do governo tem duas cabeças: o presidente, que é o chefe de Estado e é eleito nas urnas pelo povo, e o primeiro-ministro, que é o chefe de governo e não é eleito nas urnas.
A Constituição diz que, quando o partido político do presidente eleito sai das urnas com a maioria absoluta (50% mais um) nas Câmaras (Senado e Congresso), ele escolhe o primeiro-ministro. Mas, se esta situação não ocorre, então o presidente do país e os presidentes das duas Câmaras têm que designar juntos, por acordo, quem vai ser o primeiro-ministro.
Este é um processo muito democrático, mas complicado, sobretudo em um país que não tem uma política muito assentada. O Préval passou por isso, porque não tinha maioria absoluta nas Câmaras. E agora isso também vai acontecer.
Vai haver um problema de governabilidade, será preciso dialogar com as duas Câmaras. Vai ter que haver um jogo de alianças para conformar a maioria. Não é fácil, temos exemplos na história. O novo governo vai precisar de capacidade de negociação.
Vermelho: O senhor teme que, em uma eleição tão conturbada e na qual a abstenção foi tão alta, o novo governo tenha um problema de legitimidade?
Idalbert Pierre-Jean: Oficialmente, o organismo eleitoral ainda não publicou o percentual de abstenção, mas foi uma taxa baixa de participação. Algo entre 20% e 30%. Mas isso é uma coisa mundial. No mundo todo há essa tendência. No caso do Haiti é ainda mais normal por causa da situação do povo que, desde o dia 12 de janeiro de 2010, vive em tendas. E tem o problema dos documentos que se perderam com o terremoto, as listas de votação que desapareceram.
Quando a taxa de participação é baixa, no mundo todo se fala nessa preocupação com a legitimidade. Teoricamente, se o candidato é eleito com 80%, significa uma maioria popular. Mas nem tudo é preto ou branco. Se uma pessoa não vai votar, não é, necessariamente, porque não quer votar naqueles candidatos. Há todo o tipo de problemas no Haiti.
No caso do Martelly, acho que não há problema com essa participação baixa, porque ele é popular, é um ícone. É também popular na diáspora, com aqueles que estão fora do Haiti (cerca de 1,5 milhão), especialmente na Flórida.
Vermelho: Ele é um ícone da música, mas essa é a sua primeira experiência na política…
Idalbert Pierre- Jean: Eu não concordo com essa visão. Eu acho que ele pode ser um bom presidente, porque quantos, com experiência, não fracassaram? Mas tudo vai depender do seu entorno, das alianças, de quem ele vai escolher para o seu governo. O maior problema vai ser saber com lidar com as forças que têm peso no país. Não me preocupo com sua inexperiência. Às vezes, por trás da experiência, não tem o compromisso com o povo do país. E isso o Martelly demonstrou na campanha que tem.
Vermelho: O que deve acontecer com a Minustah a partir do próximo governo? Martelly tem dito que é preciso criar as condições para retirar as tropas estrangeiras…
Idalbert Pierre-Jean: Não, nunca o vi falar sobre a Minustah. O que ele diz é que há um projeto de reforma da Constituição do Haiti e há um elemento, que é criar uma nova força de segurança no país, porque não temos um exército. Então seria formar uma nova força haitiana.
Vermelho: Qual a opinião do senhor sobre a Minustah?
Idalbert Pierre-Jean: Não concordo com as visões que existem de que a Minustah é uma ocupação militar. Ela foi criada na ONU com um mandato específico, uma missão de pacificação e estabilização e com outros elementos, como a função de capacitar e ajudar a polícia nacional. E há uma participação importante da Minustah, especialmente do Brasil, em ações civis e sociais.
Desde 2004 0 Brasil coopera muito com o Haiti. E isso aumentou muito pós-terremoto, por meio da Agência Brasileira de Cooperação, das forças armadas, de algumas ONGs, a Viva Rio, a Cruz Vermelha. As Forças Armadas brasileiras acabaram de preparar um plano para a criação de uma hidroelétrica no Haiti. E o Brasil já adiantou parte do dinheiro.
O que penso é que a Minustah já faz bastante na área de segurança, mas poderia participar mais, nas áreas civil e social. Precisam-se de mais engenheiros, mais técnicos.
Vermelho: Muita gente tem feito críticas sobre o a forma como tem se dado essa ajuda internacional. Primeiro porque o dinheiro da reconstrução não chegou. Reclama-se também que não se tem procurado fortalecer o Estado haitiano e questiona-se muito o papel das ONGs. O que o senhor pensa sobre isso e por que, depois de tanto tempo de ajuda estrangeira, o Haiti ainda não conseguiu avançar no seu desenvolvimento autônomo?
Idalbert Pierre-Jean: Creio que muitas coisas já estão definidas. A reconstrução não tem que ser só física, mas tem que ser também institucional. Não é preciso fazer apenas casas, pontes e ruas. Isso está claro para o governo que está saindo e está claro também para o que vai entrar. Temos que trabalhar para fortalecer as instituições, porque o déficit do Haiti não é só econômico, é institucional. E a sociedade civil também entende isso.
Como diplomata, faço um chamado à comunidade – especialmente ao Brasil, que já atua nesse sentido – para que possa trabalhar para reforçar as instituições haitianas e promover investimentos produtivos.
Por Joana Rozowykwiat
Da Redação