Marco Albertim: Casa com cacimba
Na primeira noite quase não dormiu, com os olhos fixos na luz parda do candeeiro. Não quis dormir, não tinha vontade; quis examinar o que lhe ocorrera nos últimos dias; para examinar-se, reter os fatos na memória, dar provas de que sobrevivera. O conchego da rede acumpliciou-se com ele. A sala, quase um vácuo, com uma mesa pequena e quatro cadeiras; o verniz escuro da madeira, ocultava-a dia e noite. Era uma casa escura, tanto quanto os passos de Júlio Neto.
Por Marco Albertim
Publicado 29/07/2011 10:00
Zulmira aceitara-o com agrado para si e para ele; dir-se-ia que sua memória, vazia de lembranças, restabelecera o contato com quem, no passado, lhe fora caro; caro, sublimado e impalpável. Ele respondeu ao sorriso dela com outro tão curto, juntando respeito e gratidão. Poderia ter dito: “Prazer…”; mas a palavra, além do abuso no uso, evocaria outra circunstância. Preferiu perguntar por sua vida, sem modos de inquirição. “Como vai?” Foi um cumprimento vago, quase sem a interrogação, com desinteresse nos costumes de Zulmira. Ela nada pode dizer, inda que com uma confissão na garganta. Deleitou-se na surpresa com lampejos nos olhos; não conteve a volúpia na feição, certa de que estava sendo hospitaleira. O marido não reparara porque tinha de cor os traços dos olhos dela. Júlio Neto, módico no cumprimento, não se demorou no exame do rosto de Zulmira; não a examinou para se corrigir da vulgaridade mundana.
Preparara-lhe café, ela; serviu-o, serviu o marido. Vitorino conduziu-o aos cantos da casa, instruindo-o no uso do banheiro, da cacimba onde teria que puxar água para o banho, para não deixar resíduos de fezes na latrina. Ela os seguiu como um cão fiel, repetindo, muda, o acolhimento do marido; não tirou a volúpia dos olhos.
Na rede, com os olhos cegos na luz, Júlio Neto sentiu-se à vontade para julgar Zulmira; julgou-a submissa, aduladora, com derretimento na íris. Apreciou-a no modo franco de olhar, sem afetação, nenhum trejeito nas ancas. De lado dele, o filho mais velho, pouco mais de três anos, deitara-se noutra rede; dormindo sem ajuizar os outros.
Pouco antes da meia-noite, ela levantou-se da cama. O quarto ficava ao lado, o único da casa. Podia levantar-se quantas vezes quisesse, porque tinha os sentidos nos dois filhos de dia e à noite. Na pouca luz, Júlio Neto distinguiu-a na camisola transparente. Ela foi ao banheiro. Júlio Neto imaginou-a no asseio depois do coito com o marido. Mas o marido ficara na cama, sem tratos do pós-coito. Zulmira sentou-se na privada, despejou quase nada de mijo; dormiria sem maçada na bexiga. Na volta, parou na sala, abaixou-se para ver o filho de perto, na penumbra. Júlio Neto não teve como evitar-lhe os dois olhos; por atenção, por assentir com o zelo de mãe. Viu, assombrado, na sombra da camisola, dois fartos peitos. Achou-se tão ingrato quanto grato. A sorte o despojara dos parentes, reconfortou-o com dois mamilos raros; inda que à custa da boa-fé de Vitorino. Teria mais um segredo a esconder do mundo. Ela saiu, sorriu no canto da boca, olhando-o. Mostrou-se grata por ver-lhe junto do filho, com desvelo nos olhos; mostrou-se cabrita, sem cabritismo nos quadris. Ele incomodou-se por não sentir sono, com medo de o pensamento do mundo devassar-lhe os sentidos.
Ela, deitada, confortou-se no prazer que dera com os seios à mostra. Nunca fora espreitada no corpo antes do casamento. Teria sido, há seis anos, se tivesse casado com o homem que tinha as mesmas feições de Júlio Neto; as feições, os modos e o palavreado escasso. O pai dera-a, forçara-a a se casar com Vitorino, filho de seu amigo. O sogro morreu antes de se tornar sogro. O pai manteve a palavra, a promessa. Zulmira emprenhou no primeiro ano do casamento, teve enjoos, culpou a teima do pai; vomitou feito uma cadela doente, sem confessar as razões. O segundo filho surgiu da submissão ao ofício de cônjuge; ao ofício e à jura de nunca confessar que amara outro; amara e jungira o amor num vão da consciência.
Agora…
Foi a primeira a se levantar; pelo costume, para abusar do costume. Júlio Neto, que a muito custo conseguira dormir, não a viu no rumo do banheiro. Ela mijou de fato, carpiu-se por não ter sido vista àquela hora, de camisola. Um pouco de luz insinuara-se entre as telhas. Na cozinha, abrindo o armário das louças, acordou-o. Por conveniência, para mostrar-se grato, ele enrolou a rede, pendurando-a num dos ganchos da parede. Foi na cacimba, encheu o balde, foi para o banheiro e demorou-se no banho. Removeu o suor da noite, julgou-se livre da quizila. Levantara-se quando ela voltara para o quarto, livrando-se de um custoso cumprimento.
O café da manhã foi servido com gosto de pouco uso na casa.
A mesa, com quatro lados do mesmo comprimento, não tinha cabeceira. Vitorino sentou-se sem pose de varão. Zulmira de seu lado, com o filho menor no regaço. Júlio Neto, ao lado de Vitorino, moderou-se no uso dos talheres, da xícara de café, no corte do cuscuz, no biscoito, no pão torrado com manteiga. De frente para o pai, o filho mais velho. Zulmira comeu, deu de comer ao mais novo. Não confrontou os olhos de Júlio Neto, inda que fitando-o vez ou outra. Desvelou-se nos cuidados com os filhos, mostrando-se mais mãe do que quando dera de mamar. Vitorino debitou tudo à presença do conviva; aprovou, porque fora o primeiro a dar boas-vindas a Júlio Neto, para deixá-lo à vontade após o vexame do cerco policial.
Vitorino, já pronto, levantou-se para ir ao trabalho. Júlio Neto não quis ficar na casa. Vitorino não fizera menção para que o acompanhasse; não dera sinais de incômodo, sabendo-o em casa com Zulmira, com os meninos, sem malícia. Júlio Neto acompanhou-o, dando a entender que também tinha ocupação certa. Movia-o o medo de ser flagrado como comparsa do cabritismo de Zulmira; não perdoaria a si. Viu-se rogando desculpas a Vitorino, por ter medo do que, tinha certeza, não aconteceria. Saiu mais preocupado com os pressentimentos do que com a polícia.
Vitorino, na rua, advertiu-o para não ir ao centro. Poderia esbarrar com policiais à paisana, embora seu retrato não constasse do fichário policial.
– Vou procurar uma biblioteca pública, num bairro afastado. Conhece alguma? – quis saber de Vitorino. Distante da casa, sentiu-se tão aliviado que fitou os olhos do outro sem medo de ser flagrado em algum pecadilho.
– Vá para o Desterro. Desça no terminal do ônibus. A biblioteca fica perto. É só perguntar.
Na biblioteca, procurou algum livro que o provesse de explicações sobre governos de força, como o que pusera a polícia no seu rasto. Não achou. Estava numa biblioteca da prefeitura, por certo conivente com perseguições policiais. Por descaso ou por cegueira da prefeitura, um livro que fosse podia ter escapado da censura. Achou alguns com louvaminhas ao patriotismo vesgo dos militares. Desistiu e foi para a estante dos livros de ficção. Viu, com espanto, Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos; um autor de ficção num livro com episódios reais. Riu, Júlio Neto, da estupidez benéfica do censor. O bibliotecário olhou para o livro que ele tirara da estante, surpreendeu-se. O autor era pouco lido na redondeza. Quis parabenizá-lo pela escolha. Conteve-se pelas mesmas razões de prudência com que o leitor segurara o livro. Os dois se olharam e insinuaram afinidade nos gostos.
Ao meio-dia o bibliotecário interrompeu-o como há muito o conhecesse, avisando-o do recesso para o almoço. Dali a duas horas podia continuar a leitura. Júlio Neto voltou como se tivesse marcado um encontro, tão pontual quanto o bibliotecário abrindo as duas portas da frente. Os dois se cumprimentaram. Recomeçou a leitura na mesma cadeira. Esforçou-se para não dar mostras de foragido. Mas o instinto empurrava-o para lugares de pouco uso, quase desertos. Assim, no quinto dia de frequência, o bibliotecário distinguiu a cadeira em que ele se apoiava para ler, como o lugar do leitor de Graciliano Ramos. Júlio Neto terminara de ler Memórias do cárcere… Estava lendo Angústia.
Na quinta noite, estirado na rede, absorvendo a angústia de Luís da Silva com os sentidos nos peitos de Marina, foi acordado por Zulmira. Viera todas as noites, ela, para ver o filho, pouco se importando com a transparência da camisola. Podia arrastar a cadeira, pôr do lado da rede dele, puxar o fio da conversa, ninguém daria conta de sua trama. Esperara pela quinta noite, esperaria por mais cinco para dar a entender que era do lado dele que queria passar a noite. Vitorino, vendedor sem direito a automóvel, andava o dia todo, era o primeiro a pegar no sono.
Júlio Neto não se assustou tanto, tinha decorado a franja azul na bainha da camisola de Zulmira; era como se estivesse apreciando a chama serena do candeeiro. A franja se desbotara, a chama, de tão pequena, não tinha fôlego para pôr fim à angústia dele. Zulmira tirou proveito disso, acercou-se, absorvendo-o na respiração distante. Como já se dera com os olhos, com os peitos sem sutiã, não precisou confessar o desejo. Riu feliz, antecipando o gozo, contrafeita, ocultando-se na penumbra. Segurou na borda da rede, do lado da cabeça dele; depois, desceu a mão para tocar no ombro descoberto de Júlio Neto. Dormindo na sala de jantar, caminho da cozinha, do banheiro e do quintal, ele vestia um calção comprido, preto, uma lista branca de cada lado. Tinha lençol, mas não se cobria por causa do calor. A criança do lado dormia com uma cuequinha de nada, sem queixa.
– Não! – disse Júlio Neto.
Se dissesse apenas não, não estaria se opondo de fato. Segurou na mão que o tocara, afastando-a. Era o que Zulmira esperava. Ela segurou-o na mesma mão. Ele sentiu a caliça dura de seus dedos resistentes. Confundiu o prazer tátil com a força das mãos de Zulmira; àquela altura as duas mãos. Ela segurou-o com as duas mãos grossas, encaliçadas no puxão diário da corda na cacimba d’água.
– Você é doida!? – Também dele fugiu qualquer esperança de razão.
Zulmira acercou-se do passado como se fosse ter no corpo a fruição da mulher que ela não fora. Tinha consciência de seu fascínio sobre a indigência de gozos na rotina de Júlio Neto.
– Agora você é meu!…
Se ele tivesse visto o fogo nos olhos dela, teria se redimido do canto de parede na biblioteca, do fio de luz desprendendo-se do candeeiro, de toda sombra a que fora sentenciado. Talvez a julgasse insana. Os traços no rosto de Zulmira eram de pura insanidade. Ela o subjugou.
– Seu marido! – Socorreu-se em Vitorino; evitara falar no nome do marido, falou sabendo que seria o derradeiro recurso.
– Espere… – Pediu, ele; não resistiu, pediu subjugado – Vou ao banheiro.
Se Zulmira estivesse estertorando no desejo, teria acompanhado Júlio Neto. Enquanto ele se levantou e saiu, ela repôs os cabelos atrás das orelhas, da cabeça, e viu o filho dormindo; alisou-o também na cabeça, rogando-lhe apoio, insistindo em ser mãe. Pensou em chorar, nenhuma lágrima a acudiu. A última lágrima que deixara cair, foi quando ouvira do pai a sentença:
– Você não tem juízo para escolher o homem com quem vai se casar. Se casar com qualquer um, não vai dar certo. Você vai casar com o filho de meu compadre Gratuliano. Foi ele que me cedeu as terras de onde eu tiro o sustento da família. Agora eu vou retribuir com uma prenda; você é a prenda da minha casa, Zulmira. Vai casar com Vitorino, o filho mais novo de Gratuliano. É um moço de juízo.
De frente para a latrina, Júlio Neto mijou sem ter vontade; depois, sentou-se num banquinho de madeira, usado para dar apoio ao balde dos banhos diários. Demorou como se estivesse rezando; purgava-se, punia-se por não ter resistido ao assédio da mulher de Vitorino. Com o filho de lado, dormindo, testemunhando talvez, submisso à autoridade da mãe.
Júlio Neto purgou-se por longos minutos na umidade do chão de cimento. Olhando para os caibros, as telhas, no exame de minúcias nunca vistas por Zulmira, por Vitorino. Só seus olhos de macho acuado, abrigando-se ali, no depósito de fezes.
Quando voltou para a rede, Zulmira não estava mais na sala; talvez por causa do remorso.
Ele sozinho com os sentidos no que acontecera. Ela sozinha com os sentidos no mesmo lugar. O coito não fora consumado, mas os dois tornaram-se cúmplices.
No café da manhã, ela portou-se conforme o costume, derretendo-se nos cuidados com os filhos. No afã de ocultar os pensamentos, Zulmira chamou a atenção de Vitorino. Não estava nos cálculos dele, qualquer suspeita de infidelidade, por leve que fosse. Suspeitou que algum dos filhos estivesse doente, e ela, para não preocupá-lo, não lhe dissera.
– O que têm os meninos, Zulmira? Alguma doença?
– Não. Só Juninho que de madrugada pediu para ir ao banheiro.
O filho mais novo olhou-a, tentando se lembrar do que lhe ocorrera no sono. Não se lembrou de nada, não disse nada. Júlio Neto olhou-a, baixou os olhos para a comida; até então, não olhara para os pratos com gula nos olhos; agora, sim. Mastigou com pressa, julgando-se tão mentiroso quanto Zulmira. Quis apressar o ritual da refeição, sumir dali, ocultar-se na biblioteca do Desterro. Não podia ir para outra casa, não tinha como, não tinha quem. Teria que se livrar do capricho de Zulmira, na presença dela, de Vitorino. O menino que dormia de seu lado já se acostumara com ele, chamando-o pelo nome. Zulmira sorriu em todo o rosto, na frente do marido. Vitorino debitou à acolhida que ele dera, estava dando a Júlio Neto. Maquinando-se na mulher que não conseguira ser, ela urdiu-se em companhia do ex-namorado, nutrindo-se nos modos de Júlio Neto.
Na biblioteca, ele trocou conversa com o bibliotecário. Os dois se identificaram como apreciadores da prosa de Graciliano Ramos. Pensou, ele, que Horácio podia saber do motivo pelo qual lia o autor, sempre na cadeira, na mesa, de onde não se via a rua; onde não era visto por quem passasse na frente. Os olhos de Horácio inspiravam confiança, quietude, discrição na crença do fim da ditadura.
– Sabe que Graciliano quase mofou na prisão? – arriscou-se Júlio Neto
– Sei. Também li Memórias do cárcere. – Confessou mas não insinuou que outras pessoas estavam presas por razões iguais.
A conversa foi tão curta que ambos se deram conta de que havia medo entre os dois; medo um do outro ou de que fossem ouvidos. Júlio Neto voltou a ler. O bibliotecário, anotando títulos, voltou a escrever. Júlio Neto queria flagrá-lo numa leitura que o marcasse como uma alma afim, contrária aos esbirros da polícia. Dali em diante, entre uma página e outra, estudou os traços do rosto do bibliotecário; como se um nariz recurvado fosse o conduto da ideologia.
O primeiro fim de semana na casa, Júlio Neto imaginou-o carregado de agouros. Vitorino, por certo, dar-se-ia o direito de dormir tarde, acordar tarde; não teria o compromisso do sono pesado, para dar conta do trabalho no dia seguinte. A mulher, guiada pela sina de ser infiel, sentir-se-ia tão livre quanto ele; na maroteira, sob uma lua promitente, confiando nos astros, na cegueira de Vitorino, não deixaria Júlio Neto escapar para o banheiro. “Droga!” – grunhiu ele; sob o cerco da polícia, não se queixara assim. Teria ainda que almoçar com os dois, o primeiro almoço com os três sentados à mesa. “Não serei um comborço!” – quase gritou.
Zulmira, mesmo nos cuidados com os filhos, demorou-se na cozinha. Também ela urdira a seu modo o fim de semana. Tinha de cor os hábitos de Vitorino, até o horário em que ele vexava-se para ir à latrina. Não tiraria proveito dos dez minutos em que a porta do banheiro estivesse fechada, mas espreitaria Júlio Neto com volúpia confessa, nos olhos, no corpo. Assim o fez, guiada, guiando-se pelo desejo. Interrompeu-se quando Vitorino saiu para puxar água da cacimba, despejar na latrina.
– Quero conversar com você, Júlio. Vamos para o terraço.
Júlio Neto estava na sala, sentado, assuntando-se como um desvalido inconfesso. Se Vitorino o inquirisse como um policia, não saberia negar, ele, o episódio da quinta noite na rede.
– Você está andando com seus documentos com o nome real. Isso o deixa vulnerável para a polícia. Se for abordado na rua, não terá como esconder.
Vitorino não tinha a mesma militância de Júlio Neto, mas dispusera-se a ajudar, acolhendo os perseguidos. Noutras vezes, dera abrigo a gente com os documentos pessoais falsos, sem pistas; sentira-se seguro por se tratar de clandestinos que não o expunham, não expunham a família à polícia.
– Tive que confessar a Zulmira a razão de sua estada aqui. Ela está se esforçando muito para que você se sinta à vontade. As crianças também estão se dando bem com você. Não tenho do que reclamar, mas tenho receio…
Júlio Neto não soube por onde começar. Se mostrasse gratidão seria fingimento, embora se sentisse grato pela comida, pela luz mortiça do candeeiro, pela rede…
– Sou grato a vocês. – disse, sentindo a face vermelhar. Vitorino atribuiu ao acanhamento – Vou mudar de identidade. Fui orientado para isso. Nas eleições, vou falar com um candidato dono de cartório. Ele me dará uma certidão de nascimento com outro nome. Invento na hora. Depois, tiro uma identidade com esse nome. Até lá, terei que correr o risco; temos que correr o risco.
– O almoço tá na mesa – interrompeu-os Zulmira.
Não fosse a conversa ininterrupta de Vitorino, teria sido um almoço arrastado. Vitorino fora franco com ele, dera-lhe o sinal para meter a colher no feijão preparado por Zulmira. Júlio Neto comeu legitimando-se na fartura da mesa pouca, dividida sem mesquinheza; fartou-se sabendo que Zulmira pusera mais que tempero na panela; pusera uns agrados para ele, disfarçando-se em boa cozinheira, entretendo a confiança do marido. Depois da barriga cheia, preocupou-se com o fato de Zulmira ter sabido de sua fuga de outro estado. À noite, foi para a rede espreitando outro assédio, suspeitando que se tornara refém dela.
Zulmira não fez incursão noturna. Vitorino cutucou-a para o coito. Ela gozou porque tinha nas entranhas o pênis que urdira, vinha urdindo, de Júlio Neto. Podia gemer no gozo, festejando-se por gozar da confiança do marido, e ter o segredo do conviva cobiçado. Um homem assim, calculou, tem mais precisão de mulher. Imaginou as noites na semana, com tenções no sexo sob a luz do candeeiro.
– Bom dia – Júlio Neto cumprimentou Horácio.
– Chegou mais tarde. Pensei que não viesse fazer justiça à obra de Graciliano Ramos.
– Não sou eu que vou fazer justiça à obra dele; será a história, quando o Estado reconhecer que não lhe deu o devido valor – Júlio Neto arriscou-se, quase discursara.
– Quando o Estado pedir desculpas à memória de Graciliano, o Estado será outro.
– Está falando como alguém que tem esperanças na mudança do Estado. Acertei? – inquiriu Júlio Neto.
– Não tenho idade para perder a esperança. Nós não temos a idade para perder a esperança. Acertei?
– Estamos certos, nós estamos certos – festejou Júlio Neto; festejou e foi para o lugar de costume, sentar-se. Fazer justiça.
No fim da tarde, Horácio perguntou a ele:
– Você é professor? Parece um professor.
– Não… Não – Júlio Neto respondeu e despediu-se em seguida, temendo que lhe perguntasse sobre o que fazia na vida.
Depois do jantar, Vitorino chamou-o para conversar. Zulmira preparara uma sopa como raras vezes a fizera. O marido não gabou-lhe o tempero, atribuindo-o ao zelo pela família, testemunhado por Júlio Neto. A conversa durou pouco menos de duas horas.
Na rua sem calçamento, escura, as casas tinham o terraço sem luz; em todas havia uma lâmpada, mas cada morador, temendo uma visita imprópria, acendia a da sala atrás. O terraço escondia-se no escuro. A conversa era curta para atender, ainda, a demanda do sono.
Zulmira não esperou que a semana escoasse para se sentir à vontade no cerco ao conviva. Na terça-feira, confiante nos seus passos lentos, na cumplicidade da sombra, sussurrou nos ouvidos de Júlio Neto:
– Eu quero você porque você é igual ao homem que eu sonhei ter como meu marido. Não foi possível. Meu pai não deixou. Casei com Vitorino porque era obediente ao meu pai. Agora o destino trouxe você para minha casa.
– Eu não quero!… – Ele reagiu mole, como da outra vez. Ela segurou-o no ombro, repetiu o rito.
– Se você se recusar, eu me jogo na cacimba! – Ameaçou-o, segurando com força no ombro dele.
– Não! Tem seus filhos, o seu marido… – Acudio-o o que havia de mais caseiro no conchego da casa. – Volte para sua cama. Depois conversamos.
Zulmira voltou para o quarto porque ele não a repelira com censuras. Rogara.
De manhã, ele foi para a cacimba puxar a água para o primeiro banho. Zulmira estava na cozinha, espremendo o coador do café. Vitorino ainda dormia. Júlio Neto não se debruçara sobre a cacimba para precisar a fundura da água. Não tinha como, mas ajuizou, com susto, a distância da beirada para a água. Viu o escuro. A superfície da água não espelhou o seu rosto. Com a cintura curvada, olhando para baixo, sentiu o toque da mão de Zulmira na sua.
– Não tenho medo do escuro. Estou acostumada com poços fundos…
Ela apertou a mão dele. Júlio Neto não se moveu.