O muro de pedras da repressão*
Por Jorge Amado
Publicado 23/03/2012 20:43
Uma chuva fina começara a cair sobre a cidade após o meio-dia fazendo desaparecer certo ar de festa emprestado à manhã pelos soldados formados para a revista, na Avenida São João, pelas bandeiras nos mastros, pelos curiosos que tinham vindo espiar a cerimônia militar. A cidade estava tranqüila na hora da sesta, apenas alguns caminhões transportavam gente para o “stadium” onde devia realizar-se às três horas o anunciado comício, seguido de um jogo de futebol. Como a entrada era grátis e o jogo se disputava entre os clubes campeões do Rio e de São Paulo, bastante gente marchava em caminho do campo de esporte. Algumas pessoas, porém, começaram, por volta das duas horas, a se destacar dos grupos que rumavam para o “stadium e dirigiam-se para o Palácio dos Campos Elíseos onde o ditador estava hospedado.
No Palácio ia uma grande animação. Salas e corredores estavam cheios. O grande almoço oferecido pelo Interventor vinha de terminar e o chefe do governo retirara-se para ir dormir a sesta. Nos corredores funcionários, políticos, policiais e jornalistas se misturavam, saboreando os charutos fartamente distribuídos. No vão de uma janela, Eusébio Lima e Lucas Puccini conversavam com o Delegado de ordem política e social.
— A polícia trabalhou mal, essa é a verdade, seu Doutor.
— Eusébio Lima tirava do bôlso um dos volantes distribuídos na rua durante a revista militar: — A cidade está inundada de material comunista, êles jogaram essas porcarias mesmo na cara da polícia durante a cerimônia da manhã. Onde estavam seus homens?
—Prendemos dois…
—Dois… E os outros? Por que não prenderam todos antes da chegada do Presidente? Quais foram as ordens? E a tipografia? Era uma ordem direta do major Filinto Muller: encontrar a tipografia… Está aí o resultado: a cidade cheia de volantes comunistas.
O delegado agitava os braços, impotente, buscando desculpas numa voz medrosa:
— Êsses comunistas são uns demônios. Parecem sair de debaixo da terra… Removemos tôda a cidade buscando essa tipografia… Estou certo que ela funciona no Interior… Nós a encontraremos, haja o que houver. E já dei ordens para a vigilância no "stadium'. Lá não poderão jogar nenhum material. Tenho homens espalhados por tôda a parte…
Nesse momento começaram a se fazer ouvir os primeiros gritos da multidão. Ao mesmo tempo, Eusébio Lime e o Delegado olharam pela janela e viram, aparecendo num dos extremos da rua, o desfile, precedido de uma larga faixa.
— Que é isto? — perguntou Eusébio.
O delegado precipítou-se:
—Vou ver… — e saiu correndo, arrebanhando na sua passagem quanto investigador podia encontrar.
Lucas Puccini ocupou o lugar vago na janela, ao lado de Eusébio Lima. Procuravam os dois decifrar os dizeres da faixa ainda distante. Os gritos da multidão chegavam, cada vez mais altos. Entendiam palavras, agora as janelas do Palácio começavam a se encher, apareciam cabeças, num ar interrogativo.
— Pode ser u'a manifestação ao Presidente… — disse alguém perto de Eusébio.
— São os comunistas… Não está ouvindo os gritos: liberdade para os presos? Puxa, que êles têm raça, esses bandidos…
Os investigadores, sob a chefia do Delegado de ordem política e social, guardavam as imediações do palácio. A multidão, umas centenas de pessoas, homens e mulheres mal vestidos, aproximava-se lentamente. A grande faixa pedia liberdade para os operários presos nas vésperas da chegada de Vargas. Outros cartazes, distribuídos entre os manifestantes e, em geral, conduzidos por rnulheres, reafirmavam essa reivindicação. Era o pedido de liberdade para os presos sem processo, e eram as famílias dos prisioneiros que desfilavam. Na primeira fila vinham mulheres e crianças, espôsas e filhos dos operários prêsos naquela semana. U'a mulher destacou-se da massa, ia certamente começar um discurso, quando Eusébio Lima fêz um sinal ao delegado. Este levantou a cabeça, sem entender, perplexo.
Então Eusébio Lima estendeu o busto, debruçou-se na janela, gritou para o delegado: — Que está esperando? Que êles entrem no Palácio?
O delegado puxou o revólver, bradou uma ordem aos seus homens. O tiroteio começou. A mulher que se adiantara caiu ferida, pessoas corriam pelas calçadas buscando as esquinas, um dos manifestantes gritou:
— Não atirem! Não atirem! Queremos só pedir…
Mas já um investigador o derrubava com a coronha do revólver. A luta generalizou-se, a pequena multidão utilizava os cartazes como armas, haviam arrancado a madeira que sustentava a faixa e com ela se defendiam. Ordens eram gritadas, a guarda do Palácio apareceu, carregou sôbre os manifestantes, soldados começaram a montar u'a metralhadora na porta do jardim.
A massa recuara mas voltava a juntar-se e tentava nova-mente aproximar-se do Palácio. Foi quando' a metralhadora deu a primeira rajada. Um homem caiu de bruços, o peito rasgado pelas balas.
Ficaram cinco feridos nos passeios, ao lado do morto, um operário de Santo André. Algumas pessoas, inclusive curiosos chamados pelo rumor da luta, tinham sido prêsas. No outro dia, os jornais foram unânimes em reclamar medidas mais drásticas contra os comunistas e a louvar a ação serena da polícia…
*Título do portal Vermelho
Do livro Os Subterrâneos da Liberdade (primeiro romance da trilogia originalmente batizada de O Muro de Pedras). Rio de Janeiro, Livraria Martins Editora, 1954
Nota do redator:
Os subterrâneos da liberdade são o primeiro romance de uma trilogia intitulada O muro das pedras, na qual Jorge Amado apresenta um quadro da luta do povo brasileiro, dirigido pela classe operária, nos anos que sucedem o golpe de Estado de 1937. Esta primeira obra cobre o período de novembro de 1937 a novembro de 1945. O segundo romance, O povo na praça, abrange os anos de 1941 a 1945, e o terceiro cobre os anos 1950, Agonia da noite.