Pepe Escobar: “E aí, meu irmão, cadê você?”
O mundo árabe e, de fato, o mundo inteiro, esperava ansiosamente para saber o que diria o novo presidente do Egito, recém eleito, quadro da Fraternidade Muçulmana (FM), Mohammed Mursi, em matéria de política externa, no discurso da vitória.
Por Pepe Escobar, Asia Times Online
Publicado 29/06/2012 15:07
Clima de anticlímax. Do Egito, falou só de passagem (que respeitará “seus acordos internacionais” – expressão em código, referindo-se aos acordos de Camp David, de 1979, com Israel. Telavive e Washington que não se preocupem. Quanto à rua árabe, pode continuar preocupada.
Lacônico, Mursi parece ter evitado o grande problema. Mas nesse ambiente volátil, ccntrolado de facto pelo orwelliano Conselho Supremo das Forças Armadas, aparelho da ditadura militar egípcia, é como se a FM tivesse dito que não pensará duas vezes, se tiver de jogar os palestinos debaixo de um ônibus lerdo, se esse for o preço para manter-se no poder.
Pois nem isso bastou para acalmar a direitosfera nos EUA – com os cães raivosos de sempre pontificando sobre como o presidente Barack Obama “perdeu” o Egito, como se os EUA estivessem às vésperas de serem soterrados sob uma tempestade de areia movida a al-Qaida.
Mais uma vez, coube ao blogueiro Angry Arab, As'ad AbuKhalil, introduzir algum muito necessário bom-senso na discussão. As'ad escreveu que:
“… as eleições, no mundo árabe, ficaram resumidas a uma disputa entre o dinheiro saudita e o dinheiro do Catar”.
E, no Egito, a Casa de Thani, do Catar venceu.
É sempre importante lembrar que a Casa de Saud e a FM vivem empenhadas em furiosa discussão sobre o significado do Islã puro. A política exterior do Catar é apoiar a FM, sempre que possível. Do ponto de vista de Doha, a vitória é imensa: há hoje um islamista, na presidência da nação-chave no mundo árabe. Todos os islâmicos comprometidos, do Maghreb a Benghazi, e de Teerã a Kandahar, também têm motivos de júbilo.
Paralelamente, o candidato oficial à presidência dos EUA, a União Europeia, Israel, a Casa de Saud e o Ancient Regime egípcio – o ex-general da Força Aérea do Egito, Ahmed Shafik – perderam. Assim também, em teoria, a contrarrevolução no Egito, perdeu. Não. De fato, não. Ainda não.
Só os ingênuos terminais acreditarão que o orwelliano Conselho Supremo das Forças Armadas governa de facto o Egito sem consultar Washington e a Casa de Saud, a cada passo. Antes de Mursi ser oficialmente declarado vencedor, houve um acerto por trás das cortinas – noticiado em Ahram Online [1].
O acerto CSFA-FM resume-se a Morsi ter sido obrigado a aceitar trabalhar “segundo os parâmetros definidos pelo CSFA”. Implica que o aparelho da ditadura militar mandará em Mursi e mandará no parlamento. Só depois de sacramentado esse acerto, Mursi foi “legitimamente anunciado como presidente eleito”.
A Casa Branca cumprimentou devidamente Mursi – e cumprimentou também o Conselho Supremo das Forças Armadas, aparentemente sem escolher lado. Mas Washington apressou-se a lembrar que o governo egípcio “deve continuar a cumprir o papel de pilar da paz, segurança e estabilidade regionais” (expressão em código equivalente a “nem pensem em rediscutir Camp David”. A Casa Branca também prometeu “manter-se ao lado do povo egípcio”. Com amigos desse tipo, o “povo egípcio” – metade do qual está passando fome – tem, garantido, um luminoso futuro.
Salomônico, Obama telefonou a Mursi e Shafiq, à FM e ao CSFA. Só ingênuos terminais acreditariam que o governo dos EUA tivesse algum temor de que Shafiq – seu candidato preferido – fosse declarado presidente. Por falar em Shafik, ele já não está no Egito: teve de fugir, coberto de infâmia, já na terça-feira, quando o Procurador Geral do Egito iniciou processo para investigar seus imundos negócios, durante os oito anos em que serviu como ministro civil da Aviação do governo Mubarak.
Assim sendo, pode-se dizer que, doravante, o Egito seguirá dois projetos de política exterior: o da Fraternidade Muçulmana e o do Conselho Supremo das Forças Armadas. O jogo de forças dependerá de se a Fraternidade Muçulmana conseguirá restaurar o Parlamento (a Câmara Baixa) que foi dissolvido; se obtiver tantos votos num segundo turno de eleições parlamentares quantos obteve no primeiro turno (que foi anulado). Tampouco se sabe que tipo de poder terá o presidente egípcio: a nova constituição ainda não foi redigida.
Do ponto de vista de Washington, aconteça o que acontecer, nada alterará o rumo do dhow [veleiro] real: apoio cego a Israel, faça o que fizer; mal disfarçado apoio cego à Casa de Saud e ao Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), faça o que fizerem (incluindo repressão violentíssima contra levantes da Primavera Árabe na Arábia Saudita, Bahrain e Omã); e se alguém nos desafiar, bombardeamos ou dronamos o desgraçado, até a morte.
Do ponto de vista de Washington, a Fraternidade Muçulmana, com Mursi, pode ser declarada facilmente “contível”. Mursi não se atreverá a confrontar Israel. Morsi, muito provavelmente, dará uma de Erdogan – o primeiro-ministro da Turquia. Protestos fortes contra o brutal gulag em Gaza imposto por Telavive; apoio firme ao Hamás… mas nada que tire do lugar as relações diplomáticas e o comércio. Eventualmente, pode acontecer de a liderança israelense aceitar, finalmente, que os palestinos também são seres humanos. Mas não se recomenda a ninguém apostar nisso.
Resta saber, nesse cenário de “dois projetos de política exterior”, que lado prevalecerá no longo prazo, a Fraternidade Muçulmana ou o Conselho Supremo das Forças Armadas. O teste crucial é o Irã. Mursi, se obtiver alguma liderança efetiva, não seguirá cegamente Washington em sua obsessão de “incapacitar” o Irã – como o Iraque foi incapacitado nos anos 1990s (o longo prelúdio antes do golpe “mudança de regime”). Vê-se uma pista do que pode estar por vir: Mursi disse à Agência de Notícias Fars, iraniana, que que que as relações Cairo-Teerã voltem ao normal. Imediatamente depois veio o desmentido do Egito, que só pode ter sido orquestrado pelo Conselho Supremo das Forças Armadas.
Olivier Roy, professor do European University Institute em Florença adverte, com razão, sobre o Egito:
O caminho é longo e pedregoso. Mursi terá de prestar contas não só ao Conselho Supremo das Forças Armadas, mas também aos líderes extremamente conservadores da Fraternidade Muçulmana; afinal de contas, o próprio Mursi, até ontem, não passava de quadro desconhecido do grande público. Mursi sabe que confrontar o Conselho Supremo das Forças Armadas é confrontar Washington. Se tentar qualquer medida mais ousada, logo acharão um jeito de matá-lo softly, suavemente, método muito prezado pela secretária Clinton.
Mas… E se Mursi conseguir mobilizar milhões, nas ruas? Estão abertas as apostas sobre onde está, de fato, esse Irmão.
Nota de rodapé
*Orig. O Brother, Where Art Thou? [lit. “Irmão, onde estais?”] é título de filme dirigido pelos irmãos Coen, 2002, adaptação da Odisseia, no “sul profundo” dos EUA; três fugitivos de uma prisão procuram um tesouro escondido, perseguidos, incansavelmente, pelos guardas e por vários outros tipos de “eventos”. Informações extraídas de “E aí meu irmão, Cadê você?”
Notas dos tradutores
[1] 22/6/2012, Al-Ahram Online, Dina Ezzat em: “A deal could be reached to end current confrontation: SCAF, Brotherhood sources”.
[2] 20/1/2012, Washington Post, Olivier Roy em: “A new generation of political Islamists steps forward”
Fonte Redecastorphoto. Traduzido pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu