Intervenção queniana na Somália: ajuda ou projeto secessionista?
O protagonismo do Quênia na ocupação durante as últimas semanas de cidades ao sul da Somália como Kismayo, até então em poder do grupo islâmico Al Shabab, atualiza um velho debate sobre as intenções de Nairóbi no Estado vizinho.
Publicado 15/11/2012 21:21
Um dos primeiros motivos para reativar a análise foi a inusitada ênfase que o Quênia concedeu à operação contra essa localidade, com tropas anfibias de desembarque, helicópteros, preparação artilheira e uma moderna estratégia militar.
O exitoso avanço anti-insurgente do exército queniano, ao cumprir-se um ano da entrada de suas tropas na guerra da Somália (16 de outubro de 2011), levantou algumas suspeitas.
Os somalis reagiram contra as intenções do país vizinho sobre a região de Jubalandia, cuja cidade principal é Kismayo, na qual operam escassas tropas somalis, treinadas, ademais, por oficiais de Nairóbi. A operação para ocupar Kismayo, sob o nome swahili de Linda Nchi (proteger o país), foi estudada de maneira cuidadosa durante pelo menos um ano, ainda que analistas precisam que o processo começou em 2010.
Militares quenianos negam que essa presença na Somália tenha intenções de ocupação de algum tipo, mas os argumentos de funcionários estatais, parlamentares e pesquisadores do país vizinho parecem cada vez mais irrefutáves.
Apesar do estado de caos que tem reinado na Somália nos últimos 20 anos, de que alguns dos exemplos são precisamente as tentativas de divisão de regiões autônomas como Jubalandia e Mogadíscio tem denunciado sua rejeição a qualquer projeto queniano de secessão.
O parlamentar somali Ahmed Kama foi uma das primeiras vozes opostas ao que qualificou de "processo político encabeçado pelo Quênia no sul da Somália e que agora se desenvolve através de negociações em Nairóbi".
Kama foi, quiçá, algo irônico ao agradecer a ajuda do Quênia para libertar a Somália dos insurgentes, mas foi também preciso ao afirmar que "as questões políticas de Kismayo são de competência do governo somali e não é isso o que está se verificando".
As negociações do governo queniano com a cooperação de aliados internos na região escolhida por Nairóbi fazem com que o cientista político somali Yasin Elmi preveja as possíveis consequências de um Estado autônomo em Jubalandia:
"Ao ser impossível para um único clã exercer ali sua autoridade – reflete -, a alguns lhes ocorreu se aliar com estrangeiros, mas o acordo entre outro país e um clã local piorará a situação e prolongará o sofrimento da população local".
Hassan Mudei, subdiretor do Centro Al Shahid de Investigação e Estudos de Mídia de Mogadíscio, opina, por sua vez, que o plano de Nairóbi dependerá de como tratem e respeitem as sensibilidades e diferenças entre os clãs da região.
"Se os efetivos quenianos são considerados como uma força ocupante – argumenta -, acho que nunca ganharão a confiança da população e o projeto estará condenado ao fracasso".
O governo do Quênia organizou desde outubro último conversas em sua capital com grupos étnicos desses territórios somalis ocupados por Nairóbi e simpatizantes do mencionado projeto de Jubalandia.
A agenda desses encontros, aos quais, não sem verdadeiro cinismo, foi convidado Mogadíscio com a conseguinte rejeição de seu governo, consignam a formação de uma administração sobre esses territórios aos que o Quênia, claro, não estará alheio.
Funcionários estatais somalis alegam que a estratégia queniana se baseia em aproveitar os nexos entre etnias de sua população ao norte com as do sul somali para criar o mencionado Estado de Jubalandia, nome tomado do rio Juba, que percorre essa região.
Governantes, legisladores e estudiosos somalis tinham expressado seu alerta a respeito das pretensões de Nairóbi já antes da tomada de Kismayo, cidade de forte produção agropecuária, com os maiores porto e aeroporto da região sul.
Segundo essas fontes, o Quênia pretende converter a Jubalandia – região também conhecida como Hazana, que abarca os distritos de Gedo, Baixa Juba e meia Juba -, em um Estado autônomo que funcione como uma espécie de zona de contenção em relação à Somália.
O projeto para conceber esse Estado prevê tipo de administração "fantoche" liderada por um clã minoritário mas afim a Nairóbi nessa região, localizada entre as províncias do sul somali e a fronteira noroeste do Quênia.
Essa definição da iniciativa conduz a um possível conflito de representatividade, pois as atribuições conferidas a esse clã estabelecem uma menor participação administrativa para outros grupos étnicos que são majoritários na região.
É óbvio, ademais, que os atuais gerenciamentos anexionistas do Quênia aproveitam as divisões somalis e as sequelas de desgoverno surgidas depois do derrocamento, em 1991, do presidente Mohamed Siad Varre, ainda não superadas pelo atual Executivo.
Esse mesmo palco de caos político foi aproveitado por Nairóbi desde o momento mesmo em que decidiu intervir na Somália, sem contar então com Mogadíscio nem com a Missão da União Africana para o empobrecido país.
A decisão queniana de combater o Al Shabab em território somali foi seguida, ademais, por operações nem sempre consultadas com Mogadíscio ou com a Missão da Unidade Africana para a Somália (Amisom).
As tropas quenianas foram oficialmente reconhecidas só em julho do presente ano como parte dessa força multinacional, em cujo nome atuaram quando tomaram Kismayo e outras cidades do sul.
O território de Jubalandia foi cedido pelo Reino Unido em 1924 à Itália, que lhe chamou Oltre Giuba, e só a partir de 1960 se integrou à Somália já independente. Em 2006 passou às denominadas Cortes Islâmicas e depois foi herdado pelo Shabab.
Nairóbi insiste, por outro lado, em sua negativa com respeito a qualquer objetivo expansionista, ainda que seja um fato a presença naquela região de um contingente queniano, estimado em dois mil soldados.
O porta-voz das Forças de Defesa do Quênia (FDQ), major Emanuel Chirchir, qualificou de infundadas as acusações e explicou que a intenção de Nairóbi é a estabilidade da região "sem propósitos políticos ou de ocupação".
O mandato queniano dentro das forças de Amisom -sublinhou o porta-voz – é claro e limita-se a "contribuir à paz e à normalidade na Somália, e não a dividir ao povo somali em clãs".
Em qualquer caso, para a Somália ou qualquer país, é sempre arriscado ter que admitir em seu território tropas estrangeiras como as que ali integram junto ao Quênia essa força regional, ainda que esta opere também sob consenso da ONU.
Prensa Latina