Marcos Aurélio da Silva: Os protestos e o presente como história
Um giro até Marx: dois elementos estruturais estiveram presentes na eclosão dos protestos de junho e julho. Eles são o produto das contradições entre as forças produtivas e as relações de produção inerentes aos desenvolvimentos da formação social brasileira, bem como de sua expressão na superestrutura política nacional.
Por Marcos Aurélio da Silva (*), especial para o Vermelho
Publicado 09/08/2013 11:45
Salvo uma breve referência a isto, certamente inspirada nas formulações de Ignácio Rangel, feita pelo geógrafo Elias Jabbour em artigo publicado na página da Fundação Maurício Grabois, eis o que até agora não se disse.
No século 20, o Brasil construiu muito rapidamente uma grande economia industrial. E este tipo de desenvolvimento foi possível graças a uma revolução burguesa de tipo passivo, uma revolução-restauração. Em particular, os grandes proprietários de terra das regiões Norte e Nordeste (e até mesmo do Sul, onde são menos importantes), ao invés de eliminados como o exigiria uma autêntica revolução burguesa, lograram guardar o seu lugar, no curso do processo de industrialização, como os verdadeiros intelectuais ― formulando a política econômica etc. ― da burguesia industrial em constituição. Uma classe que sempre se mostrou acanhada para a tarefa de tomar em suas próprias mãos as rédeas do aparelho de Estado.
O resultado social e geográfico desta forma de transição capitalista não poderia ser outro. Uma pesada conservação do latifúndio e das suas relações de vassalagem, associada a uma forte expulsão de mão de obra para as grandes cidades, que assim passaram a concentrar não só grande parte da população (nossa taxa de urbanização supera os 80%), mas também grande parte da riqueza e da produção industrial nacional. E justamente aqui é que se iniciou a crise.
Como a esta altura já se está cansado de saber, foi a grande metrópole de São Paulo, com seus cerca de 20 milhões de habitantes e precário sistema de transportes, que primeiro conheceu a sanha dos protestos ― de início organizados pelo Movimento Passe Livre (MPL). Dispensável dizer que a violência policial forneceu a energia adicional. O fato é que, esmagadas por uma carência comum a tantas cidades brasileiras, milhares de pessoas, em diferentes pontos do país, logo seguiram os manifestantes paulistas, que só muito forçosamente poderiam ser associados (talvez apenas no primeiro momento) aos jovens de classe média. E para ter certeza disto basta ver que 55% dos jovens brasileiros entre 18 e 30 anos pertencem aos estratos sociais que ganham menos de dois salários mínimos (o dado está na coluna de Maria Cristina Fernandes do Valor Econômico de 14.06.2013, p. A6). Certamente muitos deles expressão da nova classe trabalhadora formada nos governos Lula ― e para quem nem mesmo o aumento de cerca de 70% do salário mínimo desde que o PT assumiu o governo nacional, pode aplacar as terríveis condições de locomoção diária (para o trabalho, para a universidade) a que estão sujeitos.
Para ficarmos apenas em um exemplo, a rede brasileira de metrôs, quando comparada à de diversas cidades mundo afora, e até mesmo cidades de países do Terceiro Mundo, é absurdamente deficiente. Ela cobre em sete capitais não mais que 276,4 km, enquanto apenas Londres conta com 402 km, Nova York com 337 km, Tokyo com 328 km, Cidade do México com 226,5 km (Valor Econômico de 24.06.2013, p. F10). Eis o fato e não há como não concluir: as forças produtivas não estão adequadas às novas relações capitalistas construídas ao longo do século 20, mas também com aquelas mais recentemente organizadas pela expansão econômica dos anos Lula. E uma inadequação que inegavelmente é o produto da crise fiscal do Estado que se seguiu à grande onda de industrialização do período militar. Mas que também foi aprofundada nos anos de neoliberalismo e não encontrou solução apropriada ― mediante uma decidida superação do rentismo, diga-se logo ― na era Lula.
Antes que se pense que tudo se restringe a esse aspecto econômico, é preciso voltar os olhos para a dimensão supraestrutural de todo o problema. A economia é determinante apenas em última instância, ensinou Engels.
Além da rebelião contra as tarifas, os que foram às ruas protestaram contra todo tipo de coisa. A corrupção, por maiores investimentos em saúde e educação, contra as obras da Copa do Mundo etc. Ora, sem duvidar que houvesse aqui pelo menos algo de um movimento espontâneo, é preciso reconhecer que esta não foi a nota dominante. Talvez tenha sido o caso das manifestações que se avolumaram imediatamente após a violência contra os primeiros protestos. Mas os que vieram a seguir foram predominantemente organizados pela mídia de direita que se opõe ao governo e pelas redes sociais ligadas a esta mesma direita. E o fizeram confundindo a população. Daí o frequentemente desinformado ataque aos gastos com a Copa, não raro associados à corrupção, sempre com a finalidade de fazer passar a velha tese neoliberal das rent seeking societs, cujo sentido último é: se se quer menos corrupção, é necessário reduzir o papel do Estado.
É assim que os protestos contra as mais diferentes coisas, algo embalados pelo que Wanderley Guilherme dos Santos chamou de “anomia niilsta”, desaguou com facilidade nas muitas faixas pedindo o impeachment de Dilma Rousseff. Aliás, não é sem espanto que se pudesse ver o principal jornal de Santa Catarina, não por acaso pertencente a uma empresa associada à Rede Globo, publicar na seção de leitores, no dia seguinte às grandes manifestações de 20 de junho, uma carta em que se desejava para Dilma Rousseff a mesma sorte de Muamar Kadafi. Detalhe: o autor da missiva assinava como empresário. Vale repetir. A esta altura tudo poderia parecer espontâneo. Mas decididamente não o era.
E o que explica que as coisas tomassem essa forma? Não há nisto qualquer relação com os processos históricos referidos acima? Há quem não se canse de entronizar a novidade técnica das redes sociais, apresentadas quase como o novo motor da filosofia da história. Pergunte-se: o presente com o qual convivemos não tem mais história, ele é só técnica? Em nossa formação nacional tudo está completo e acabado? Nem tanto.
Difícil não lembrar ― e obviamente sempre mudando o que deve ser mudado ― a tese de Vitor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. De fato, a revolução passiva que permitiu a industrialização sem reforma agrária, é a mesma que preservou os interesses dos velhos proprietários de terras ― certamente hoje já habituados à modernização técnica de suas lavouras ― na vida política nacional. Interesses estes bem estampados no que se convencionou chamar de presidencialismo de coalizão, forma de governo que, desde o fim da ditadura, e seja qual for o partido eleitoralmente hegemônico, implica uma série de concessões ministeriais e em torno da máquina pública como passagem para a governabilidade.
Alguma dúvida de que aqui encontramos uma parte da explicação para o reformismo fraco a que tiveram de se entregar os governos Lula e Dilma? E o que dizer do caráter anômico dos protestos destes dias, prontamente aproveitados pela direita? Vale não esquecer que o PT, com um tamanho e capacidade de luta que lhe valeu já o título de maior partido socialista do Ocidente capitalista (o que em boa medida ainda o é), desde que passou a ser pressionado pelo esquema de governabilidade vigente ― embora já acusando, é verdade, um grau qualquer de transformismo ―, abandonou flagrantemente a tarefa de organizar as massas, incluídas aqui a classe média (veja-se o caso dos servidores públicos).
Aliás, passados dois meses, a impressão que está ficando é que só esta dimensão é que está atraindo o conjunto das atenções. E isto quase sempre com a conclusão de que as forças progressistas lograram vitórias excepcionais. Com efeito, os prefeitos tiveram de suspender os aumentos de tarifas. O Congresso Nacional começou a se movimentar, desobstruindo pautas mais progressistas. Dilma Rousseff destinou recursos para investimentos urbanos e mandou ao Congresso uma mensagem sugerindo uma reforma política, bandeira dos partidos de esquerda. Ainda assim, a direita, que no calor dos protestos conseguiu fazer passar uma desabrida aversão aos partidos, e que não se cansou de plantar, por meio de suas representações midiáticas, uma saída bonapartista, com a pregação em favor das candidaturas avulsas, também contabilizou ganhos. E o maior deles certamente foi o de ter levado Dilma Rousseff a uma rápida queda nas pesquisas eleitorais.
Uma conta pequena, dado o acanhamento dos governos petistas? Eis uma questão ainda em aberto ― e que mesmo o PT, sem que tenha que se restringir, como em seus inícios, a uma visão naturalista das lutas de classes, está agora obrigado a colocar a si próprio. Aliás, e para abrir aqui um dedo de prosa com a esquerda perfilada na oposição, se uma visão menos empirista dos conflitos de classes deve ser empregada, a pergunta acima não deveria então ser endereçada também aos venezuelanos, bolivianos, argentinos etc.? Como se sabe, todos zelosos em sustentar o bloco dos governos progressistas sul-americanos que, na última década, soube armar um sólido dique contra os interesses imperialistas dos EUA.
Certamente, compreende-se que uma visão desta natureza ― ou pelo menos sua versão mais radicalizada ― possa até mesmo acreditar que o que o país viveu nos dois últimos meses encerra um decisivo conflito entre revolução e contrarrevolução. Nada mais enganoso. O que vimos ali parece ser antes a forma aguda da disputa entre os diversos graus de reformismo que a esquerda liderada pelo PT pode fazer valer e o projeto de contrarreforma derrotado por Lula em 2002. Ao fim e ao cabo, diferentes formas de interpretar as tendências de fundo que estão presentes no interior da formação social nacional. Seguramente, só a primeira pode fazê-la avançar. E tanto melhor se através de um reformismo forte. Voltando para a “economia”, que tal começar as coisas pela política cambial e suas perversas relações com o rentismo?
(*)Professor da Universidade Federal de Santa Catarina