M.K. Bhadrakumar:  A junta do Egito não tem nada a perder

 A nomeação de Robert Ford para embaixador americano no Egito foi a indicação clara de que a administração Obama já esperava a criação das condições para uma guerra civil no país. A especialidade de Ford durante o seu sucesso “diplomático” em Bagdad, em meados da década passada, foi a organização dos famosos esquadrões da morte, que dilaceraram a Mesopotâmia e destruíram de forma irreparável o Iraque.

Por M.K. Bhadrakumar (*)

Ford teve, igualmente, um papel idêntico no cargo seguinte, em 2011, como embaixador em Damasco ao conseguir desencadear com sucesso a guerra civil na Síria. Ford é a prova evidente de que não houve qualquer verdadeira mudança na política do Oriente Médio dos Estados Unidos com a passagem da administração de George W. Bush para a de Barack Obama, compenetradas em perpetuar a sua hegemonia regional.

Não há dúvida de que o plano dos EUA é desestabilizar e destruir o Egito, tal como o Iraque e a Síria foram destruídos com o objetivo de assegurar a segurança total no futuro previsível.

Esta é também a conclusão que se pode tirar do assassínio massivo de centenas de manifestantes, executada pela Junta egípcia. Começou, pois, no Egito, um banho de sangue de enormes proporções.

O exército egípcio é, literalmente, uma criação dos EUA. A ajuda militar norte-americana é vital para a Junta militar egípcia. A verdadeira agenda que está por trás da derrubada do governo do presidente Mohamed Morsi já não pode ser escondida. Epígonos dos Estados Unidos espalharam a estória de que Morsi pagou o preço da sua intransigência política e de manter fechadas as portas à democracia “inclusiva”.

Mas o banho de sangue iniciado no Egito revela que a agenda norte-americana conta uma estória com uma verdade diferente. Trata-se de um processo que começou a empurrar o país para uma guerra civil, de que pode nunca mais regressar como o coração pulsante do “arabismo”.

A Junta militar não tem qualquer intenção de transferir o poder a um governo democraticamente eleito. Os EUA foram vendendo a estória de que procuravam convencer a Junta a regressar aos quartéis, para criar a ideia de que Washington no Oriente Médio está do “lado certo da História”.

Na realidade, Washington conta com a Junta para prosseguir as políticas de segurança que servem os interesses de Israel. Essa é a questão essencial para a administração Obama e a Junta sabe disso. O sofisma sobre a palavra “golpe”, o envio de emissários qualificados para se encontrarem com Morsi na prisão, o aparecimento de John McCain no Cairo – são tudo manobras diversionistas para deitar poeira nos olhos da opinião pública internacional.

O cerne da questão é que os EUA estão muito satisfeitos por a Junta Militar egípcia estar a mexer os pauzinhos com o Hamas e a ajudar a restabelecer o bloqueio à Faixa de Gaza. Por outro lado, o Cairo tornou-se novamente no supermercado para a Palestina de Mahmoud Abbas – tal como no tempo de Hosni Mubarak – uma marionete disposta a dançar a música de Washington e Tel Aviv, o que também serve para criar a ilusão de que existe um processo de paz no Médio Oriente sob mediação norte-americana, quando na verdade não existe nada.

Na verdade, o que parece é que há um acordo conjunto EUA-Israel-sauditas sobre o Egito. O regime saudita nunca escondeu a sua antipatia para com o governo Morsi e a sua obsessão com a Irmandade Muçulmana. O regime saudita tem um medo de morte de que a ascensão num quadro democrático da Irmandade Muçulmana seja visto pela “Rua Árabe” como um exemplo convincente para as oligarquias do Golfo Pérsico. Resumindo, os sauditas estão dispostos a financiar a Junta egípcia, desde que esta extinga a Irmandade e impeça os Irmãos de prosseguirem com o seu programa de forçar mudanças de regime no Conselho de Cooperação do Golfo (CCG).

O papel dos sauditas também é essencial para que a mudança de regime no Cairo não custe nada ao contribuinte norte-americano e que os EUA não sejam obrigados a despender dinheiro para salvar a economia egípcia. Enfim, a convergência entre os EUA, Israel e a Arábia Saudita é quase cem por cento quando se trata de preservar a Junta militar – política, financeira e militarmente – no Egito.

A solitária voz da Turquia a chamar os bois pelos nomes expressa a oposição incessante ao golpe militar no Egito, mas revela-se ineficaz contra a enorme claque dos Estados Unidos e dos seus aliados regionais, perfilados atrás da Junta. De qualquer forma, a Turquia desacreditou-se ao interferir na Síria, pelo que não tem autoridade moral para continuar a levantar a bandeira da Primavera Árabe e as reformas no Oriente Médio. Além disso, discute-se se o governo islâmico da Turquia sobreviveria se não se concertasse com Israel e se não atirasse para trás das costas as suas políticas regionais independentes.

Também o Irã tem seguida uma política dúbia para com o Egito desde a queda de Morsi. Ironicamente, partilha com a Arábia Saudita a preocupação de a Irmandade Muçulmana exercer uma elevada influência regional (particularmente sobre o conflito na Síria), o que a pode tornar num best no conjunto do Oriente Médio. Por outro lado, o Irã ficou desapontado e sentiu-se desiludido com o pragmatismo do governo Morsi e não forçar o confronto com Israel e até manter uma boa relação com a Administração Obama. Claro que a Irmandade retirou o Hamas do campo de influência liderado pelo Irã e ajudou a consolidar o namoro de dois anos do Hamas com o Qatar, o que ajudou a consolidar o eixo regional anti-iraniano que envolve a Turquia, o Qatar e o Egito.

Dito isto, o Irã vê claramente a mão dos EUA-Israel-Arábia saudita a sustentar a Junta militar egípcia e esperar que as contradições surjam entre os protagonistas. Em última análise, o aumento das forças salafistas no Egito, o que está a acontecer com a proteção da Arábia Saudita à Junta militar, não é, definitivamente, do interesse do Irã. Este país sabe que é uma questão de tempo até que a onda salafista se torne um instrumento dos EUA e da Arábia Saudita para as políticas regionais num variado número de teatros do Grande Oriente Médio – que vai desde o Levante até o Afeganistão e a Ásia Central.

De uma maneira geral, em grande parte do mundo não-muçulmano a tendência tem sido para ver despreocupadamente os acontecimentos egípcios como um conflito entre o secularismo e o islamismo político. Há, obviamente, uma simpatia real para com as forças seculares do Egito no campo das forças democráticas. (No entanto, a saída do Prêmio Nobel Mohamed El Baradei do governo interino do Cairo deve constituir uma enorme surpresa). Consequentemente, desenvolveu-se uma ambivalência estratégica – como aconteceu durante a guerra civil na Argélia –que considera ser o Islã político uma coisa perniciosa e contrária à democracia pluralista e aos direitos humanos, daí que, por vezes, a coerção e mesmo a força militar pode tornar-se necessária para conter o seu surto.

Portanto, na sua quintessência, a batalha que está a ser travada pela alma do Egito é inteiramente geopolítica. Mesmo a pretensão final de que tudo isto é sobre a mítica Primavera Árabe está a ser descartada. Na perspectiva de Washington, o Egito é um jogador demasiado importante no tabuleiro do Oriente Médio. E a administração Obama está determinada a manter o Egito como seu Estado vassalo, custe o que custar, pois caso contrário, toda a estratégia regional dos EUA no Oriente Médio baseada na segurança e domínio militar de Israel começaria a descarrilar. E ponto.

Há grande probabilidade de a Junta militar egípcia não ser recriminada pela sua repressão à Irmandade. A Junta fez cuidadosamente o seu trabalho de casa e concluiu que pode tomar como garantida a cobertura de Washington – apesar de a administração Obama continuar a falar em “democracia inclusiva” nas margens do Nilo para impressionar os árabes e a opinião pública mundial – ao mesmo tempo que colabora com o establishment de segurança de Israel. A generosa assistência financeira saudita cria muito espaço para a Junta egípcia manobrar e criar espaço para a sua sobrevivência.
Obama pode também adotar uma visão de que, afinal de contas, é a um presidente americano por ele considerado um modelo, Franklin D. Roosevelt, que é consensualmente atribuída a vergonhosa, cínica e gélida declaração – «Somoza [ditador na Nicarágua] pode ser um filho da puta, mas é o nosso filho da puta».

(*) M.K. Bhadrakumar foi diplomata de carreira no Serviço de Estrangeiros Indiano

Blog da Resistência, com O Diário.info
Este texto foi publicado originalmente em www.strategic-culture.org