Mortes invisíveis, por Felipe Santa Cruz

Atônitos diante de uma passeata na Avenida Rio Branco, policiais não sabem a quem proteger ou prender quando preciso. Gravações nas estreitas vielas da Favela do Rola trazem o exato momento em que um PM manda desligar a câmera.

Um poderoso helicóptero busca no meio da noite — em outras vielas estreitas — o traficante Matemático e, diante de uma possível confirmação de identidade, tem sua artilharia acionada como em uma batalha do cerco a Saigon. 

A última conta deste rosário pode chegar sem grande surpresa para um desatento. O GPS das viaturas da PM em operação na Rocinha no dia do desaparecimento do pedreiro Amarildo estava desligado. Logo o GPS que, ao ser colocado nos carros da polícia, marcou um dos avanços da modernidade da instituição. 

Todos estes momentos que ocuparam a mídia nos últimos meses pertencem ao mesmo fato gerador. A polícia do Rio de Janeiro não possui um claro protocolo de procedimentos. O arbítrio do policial diante das mais variadas situações conflituosas acaba gerando um espaço de ação em que a capacidade de discernimento de uma polícia mal treinada e mal remunerada mostra sua face mais atrasada. 

Sim, ocorre um conflito entre a velha polícia de enfrentamento (que descende do capitão do mato) e a modernidade que vem sendo tentada pelos agentes públicos nos últimos anos, prometida em especial a partir da promissora experiência das UPPs. 

A população, esta sim com motivos para estar atônita, acaba devolvida aos paradigmas anteriores ao processo de modernização, como aquele que contrapõe repressão e direitos humanos. Não estranhamente voltamos a ler declarações furiosas contra os “protetores de bandidos”, acompanhadas de outras que também exageradamente identificam na polícia a fonte de todos os males da sociedade. Garantir o direito de manifestação e de defesa dos acusados não significa permitir que pequenos grupos coloquem fogo na cidade. 

O policial da rua deveria ser o maior interessado na defesa da lei e de procedimentos mais claros. Deveria ser treinado para as situações do dia a dia democrático. Sem procedimentos claros que balizem sua atuação o policial — muitas vezes a pedido do senso comum —, executa ações que o colocam ao arrepio das instituições e do próprio processo civilizatório. Muitos batem palmas quando acontece em vielas pobres com um traficante de nome jocoso, mas todos se enfurecem quando atingido um pobre pedreiro da Rocinha. 

Importante que tenhamos neste momento a capacidade de não perder o trem da História, que guarda avanços, criando propostas para a polícia moderna que queremos, desvendando também seus aspectos mais atrasados. Isso a OAB/RJ pretende fazer na campanha “Desaparecidos da democracia: Pessoas reais, mortes invisíveis”. 

Vamos lutar pelo esclarecimento de mortes — mais de dez mil entre 2001 e 2011, segundo dados oficiais do Instituto de Segurança Pública — registradas como autos de resistência pela PM nos últimos anos. Depois de exigir informações sobre os casos de cidadãos que desapareceram nos tempos da ditadura, a Ordem entende que é hora de jogar luz sobre esse canto sombrio do período democrático, com base numa premissa: defender a lei e procedimentos policiais claros é defender a sociedade e o próprio policial. 

*Felipe Santa Cruz é presidente da OAB-Rio.

Fonte: O Globo