Duas traduções da missa do galo
No próximo 29 de setembro, iremos para 105 anos da morte de um dos maiores escritores do Brasil. Daí que recupero um texto sobre os obstáculos mal vencidos em duas traduções de Missa do Galo.
Por Urariano Mota
Publicado 27/09/2013 18:23

De imediato, aos tradutores de Machado de Assis devemos prestar a nossa solidariedade, a nossa compreensão, o nosso agradecimento. Se possível, nessa ordem. E para que bem entendam as nossas boas intenções, daquelas que enchem o inferno, transcrevemos palavras da tradutora norte-americana Daphne Patai:
Guardadas as diferenças da nossa língua para o inglês, de quantidade e qualidade, a dificuldade mencionada se aplica também ao espanhol, essa língua irmã tão enganosamente semelhante ao português. Diríamos mais, a leitura de Machado de Assis por vezes exige uma tradução astuciosa até para os falantes nativos. E não dizemos isso por gosto do paradoxo. Machado, como todo grande escritor, cobra o preço de leituras amadurecidas, de saber e experiência feitas, antes de revelar o seu encanto. O gênio mulato cobra o preço de uma sensibilidade educada, uma cobrança que, por justiça, começa para os leitores da sua nacionalidade. Se isso ele faz com os leitores da própria língua, o que não fará com estrangeiros?
Cumprimentos prestados, vamos ao trabalho. Acompanharemos duas traduções do conto para o espanhol, uma de Gabriela Hernández, e outra de Elkin Obregón. Tentaremos comentar alguns pontos de divergência delas em relação ao original. E que Jesus nos ajude, porque assim começa Machado:
Gabriela Hernández:
Elkin Obregón:
À primeira vista, tudo é igual. Queremos dizer, a partir do primeiro parágrafo os leitores do original e das duas traduções sabem que o narrador se põe na pele do personagem, e passa a narrar uma conversação mantida com uma senhora, sendo ele um jovem, em uma noite de Natal. O fato, a cadeia de fatos, o “enredo” é mantido. Mas a segunda é mais fiel, nos parece, porque acompanha os tempos verbais do autor. Adiante.
Gabriela Hernández:
A las diez de la noche toda la gente se recogía en los cuartos; a las diez y media la casa dormía. Nunca había ido al teatro, y más de una ocasión, escuchando a Meneses decir que iba, le pedí que me llevase con él. Esas veces la suegra gesticulaba y las esclavas reían a sus espaldas; él no respondía, se vestía, salía y solamente regresaba a la mañana siguiente. Después supe que el teatro era un eufemismo. Meneses tenía amoríos con una señora separada del esposo y dormía fuera de casa una vez por semana. Concepción sufría al principio con la existencia de la concubina, pero al fin se resignó, se acostumbró, y acabó pensando que estaba bien hecho”.
Elkin Obregón:
Menezes tenía amores con una señora, separada del marido, y dormía fuera de casa una vez por semana. Concepción había sufrido, al principio, por la existencia de la concubina. Pero al fin se había resignado, se había acostumbrado, y terminó pensando que aquello era una cosa normal”.
As divergências aqui deixaram de ser pequenas. Ambas traduções tentam melhorar o original, na esperança de torná-lo mais compreensível, ou razoável. Mas cada uma à sua maneira. Mirem.
Em Gabriela Hernández ocorre o que nos parece mais grave. Ela abre um parágrafo depois de “Eran de viejas costumbres”, e com isso fere a ambiguidade em Machado, que ao escrever “A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos…”, alcança com “Costumes velhos”, entre duas frases, as duas escravas e o costume da família em se deitar cedo. No corte feito por GH, não. As viejas costumbres se associam à prática de possuir escravas, o que Machado, mulato e humanista, não deixaria de observar. Pero não de maneira clara, digamos, pois estava na pele de um narrador integrado aos quadros de cima e costumes do Brasil. Nesse trecho, menos graves são as interpretações, em lugar do traduzir, de algumas palavras. O “assobradado” (casa rica, à semelhança de um sobrado, com pavimentos sobre o térreo) se transforma em “casa soleada”; as caretas da sogra sofrem um câmbio para gesticulación, e as escravas que “riam à socapa”, às escondidas, passam a escravas que “reían a sus espaldas”, às costas do senhor e patrão.
Em Elkin Obregón as adaptações são outras. O sobrado, ou o assobradado, se perde o fausto, ganha o sentido da raiz da palavra, porque se torna uma “casa de dos plantas”, de dois andares. Mas um abuso, menos pequeno, é quando a tradução encerra o parágrafo em “eufemismo en acción”, para reiniciar um com “Menezes tenía amores con una señora”, que explica o eufemismo das saídas para o teatro, que Machado escrevera. Não sabemos se isto – esses parágrafos de diagramação, de “estética” – se dá porque o leitor há de ser ajudado na vista, para ter uma leitura agradável, ainda que se mutile o pensamento, a expressão original. Não sabemos por quê. Será que tal coisa só é respeitada na escrita sem fim de Marcel Proust? Será que só uma pessoa da corte, sem corte de parágrafo, pode iniciar uma pergunta a Swan na página 9 para concluí-la na página 193 ?
Se nos permitem uma digressão plebeia, com rigoroso respeito a cortes, lembramos que no texto “Enmendando Cervantes”, nós chamávamos a atenção para o fato de que há um respeito quase místico dos tradutores pela poesia, quando poema. Já pela prosa, ah, prosa é prosa, acredita-se até que prosaico é o seu alter ego. Se se impõem parágrafos onde antes não havia, isso quer apenas dizer, talvez, que o leitor sai gratificado. Adiante.
Gabriela Hernández:
Elkin Obregón:
Acima, são trechos que falariam da inadequação de “mote’, apelido, na tradução de Gabriela Hernández, para a palavra “título” do original, ou de “sin muchas lágrimas ni risas”, na tradução de Elkin Obregón, para o “nem grandes lágrimas, nem grandes risos” que esclarece o sentido de moderado, na escrita de Machado. Há uma diferença de tom, de tonalidade, de gradação, do original para o traduzido. Isso poderia e poderá ser pontuado em toda a tradução, nessa particular de Missa do Galo, e em toda e qualquer tradução, em todo o mundo. A perfeita versão é impossível, o sentido e sabor que tem uma palavra na língua materna, isso se perde para ganhar outra nuance, em outro idioma. Sabemos. Daí que os tradutores, esses artistas tão mal remunerados, são facilmente transformados em saco de pancada, em punch ball de qualquer crítico amador. Em outro extremo, os tradutores, quando atingem um grau de excelência, se tornam uma ponte de culturas, uma ligação indispensável entre os mundos de gentes distantes. Eles terminam por conhecer além do peso específico de uma palavra. Em um extremo inalcançável, talvez, o tradutor ideal passearia com intimidade pela música, pela geografia, pelo cinema, pela gíria de classes, pela fala, acentos particulares, como se fosse um espião de outro país a se confundir com um nativo culto, em resumo. Não poderemos jamais exigir tanto, ainda que não estejamos proibidos de sonhar com essa provável impossibilidade.
Mas há uma exigência que temos o direito de exigir em uma tradução. Que é: devolvam-nos por favor o sentido que adentra o espírito, o quê de mistério e de estranheza, o quê de belo e de amargo e doce que há no original, quase como uma imagem física de uma pintura, onde ficamos horas a navegar, como certamente um dia ficaremos no Prado ou em Florença. Aquela aura, auréola, que não é de ouro, mas de atmosfera, aquele clima em torno, aquela concreção de carne ou de ar, aquele impulso de lançar uma taça de vinho ao teto, quando o entusiasmo nos faz gritar bravo!, arretado!, carajo!, isso gostaríamos de retomar na obra traduzida. Para cessar de erguer platitudes, digamos desde já que existe um momento nestas duas traduções de Missa do Galo que prejudica e muito o sentido original do conto de Machado de Assis. E nos perdoem se a nossa frustração não se tornar expressa. Mirem.
– Não! qual! Acordei por acordar”.
Cerré el libro; ella fue a sentarse en la silla que quedaba frente a mí, cerca de la otomana. Le pregunté si la había despertado sin querer, haciendo ruido, ella respondió enseguida:
– ¡No! ¡Cómo cree! Me desperté yo sola”.
Elkin Obregón:
— No, de ningún modo; desperté porque sí”.
Ou no contexto do conto, perderam a sua promessa. Como um parágrafo de esperança.