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Fábio Palácio: Uma revolução de muitas revoluções

Parte 3
O fenômeno denominado “consumo imitativo” deriva do fato de que a tecnologia, “como qualquer produto social, adquire suas principais características das relações sociais efetivas de sua época e local” (Id. Ibid. p. 8).
Por Fábio Palácio*

Em outras palavras, os produtos que consumimos não são decorrência “natural” de descobertas científicas e avanços técnicos. Há, neles embutidas, opções políticas e culturais que terminam por conformar valores, hábitos, estilos de vida. O exemplo do automóvel – que esteve no centro das recentes discussões sobre mobilidade urbana – é talvez dos mais representativos.

Obviamente, quando elaboram seus produtos as empresas adotam os modelos culturais vigentes em seus países de origem, onde se situam suas matrizes. Do ponto de vista dessas empresas, é muito importante que os produtos consumidos nos países periféricos sejam absolutamente iguais àqueles produzidos nos países centrais. Isso é, antes de tudo, uma necessidade econômica. Pode-se obter considerável economia de investimentos nas subsidiárias se normas técnicas, maquinário, matérias-primas e até propaganda não são diferentes daquilo que já é utilizado na matriz. Observadas essas condições, obtém-se uma amortização dos custos de produção e multiplica-se o lucro auferido com a economia de escala. No entanto, a fim de que isso realmente aconteça, é necessário sujeitar o país periférico aos mesmos hábitos, à mesma cultura dos países desenvolvidos, sede das tecnologias importadas. Os meios de comunicação de massa realizam grande parte desse trabalho, impondo hábitos, valores e estilos de vida discrepantes da realidade local. Os habitantes do país dependente, no anseio de satisfazer aspirações muitas vezes postiças, passam a se constituir em mercado cativo de empresas estrangeiras, tornando a situação praticamente insuportável para as empresas nacionais.

“Ao adotar-se uma determinada tecnologia importada, como no caso do fio sintético, dispara-se uma verdadeira bola de neve de comprometimentos adicionais cujos resultados são traduzidos em pesados débitos nas contas com o exterior.
[…]

“O pior da estória é que na maior parte dos casos os hábitos adquiridos são absolutamente supérfluos e nada têm a ver com a realidade da grande maioria da população.
[…]

“O país se endivida, a cultura local é alienada e a grande maioria da população não vê atendida decentemente as suas necessidades básicas […]. O padrão de felicidade estampado pelos veículos de comunicação, principalmente pela televisão, conjugado com empresas estrangeiras ou nacionais dependentes que só sabem fabricar coisas para o habitante do país central, deixa o pobre esmagado. Os meios de comunicação despertam aspirações inatingíveis pela maioria, com graves
consequências no campo psicossocial.” (LONGO, 1984, p. 57)

Como podemos perceber, as consequências desse processo não se restringem ao campo econômico. Elas penetram todos os poros da sociedade e criam um ciclo de dependência que se retroalimenta. Pois, em ambiente tal, não há motivação para a geração de tecnologias próprias, para a produção de soluções genuínas. Cria-se uma atmosfera de prostração que se retransfere do plano cultural para o plano econômico. Pois, como não parece haver alternativa que não seja a de seguir aqueles “maravilhosos homens e suas máquinas voadoras”, nada se cria de novo, o país central continua emanando soluções e os países periféricos afundam ainda mais na dependência – uma dependência que é simultaneamente econômica, política e cultural.

Não é por outro motivo que, como afirma o relatório final da CPMI das Causas e Dimensões do Atraso Tecnológico, “para ser eficiente, técnica e economicamente, há que sê-lo, simultaneamente, social e culturalmente” (CONGRESSO NACIONAL, 1992, p. 133). Uma formulação que os comunistas chineses parecem conhecer, porquanto, embora com outras palavras, praticamente a reproduzem: “O poder e a competitividade culturais constituem um importante sinal da prosperidade e da força do país e do revigoramento da nação” (JINTAO, 2012, traduzido do espanhol).

Da forma como se encontram redigidos, os tópicos 139 e 140 parecem subestimar as condicionalidades políticas e culturais da produção e transferência de tecnologia, enfocando o problema científico e tecnológico apenas em sua dimensão econômico-produtiva – certamente importante, mas não a única – e deixando de lado a importante advertência de LONGO (1984, p. 21) segundo a qual “uma política industrial que contemple uma maior autonomia nacional […] deveria ter um enfoque tecnológico e não só econômico”.

A questão se reveste de colorações gritantes porque os pontos 139 e 140 encontram-se abrigados em tópico geral sobre “desenvolvimento” – conceito que, embora frequentemente restrito à acepção econômica, comporta múltiplas dimensões (Cf. BARROSO e SOUZA, 2010, passim). Talvez a questão possa ser parcialmente resolvida com a simples transferência dos dois tópicos para a seção seguinte, denominada “Mudança da orientação macroeconômica – condição para maior investimento e pleno desenvolvimento”.

De todo modo, é sempre oportuno aprofundar o debate programático sobre aspectos chave do novo projeto nacional de desenvolvimento. Entre esses aspectos se inclui, indubitavelmente, a problemática científico-tecnológica – uma área de confluência, que permite visualizar as múltiplas e complexas relações entre economia, política e cultura. Em uma abordagem materialista efetivamente moderna, capaz de evitar os riscos do reducionismo e do mecanicismo, é importante compreender os fatores políticos e culturais não como mera derivação de causas econômicas, mas como componentes ativos, forças materiais potentes, as quais assumem muitas vezes caráter constituinte e funcionam como vetores, conferindo forma concreta aos processos econômicos mais gerais.

É necessário conceber economia, política e cultura como um todo complexo e articulado, ou não seremos capazes de conceber uma autêntica estratégia nacional – um novo projeto nacional de desenvolvimento à altura das potencialidades da nação. Se pensado de maneira consequente e articulada, a partir do entendimento de uma multiplicidade de aspectos sociais que intervêm e se reforçam entre si, esse projeto pode representar para nosso país uma autêntica revolução. Mais que isso: uma revolução de muitas revoluções, dentre as quais se destacam a revolução democrática, a revolução industrial e a revolução cultural. Se pensarmos bem, por trás da aparente “diversidade” de bandeiras das manifestações de junho – e malgrado as tentativas de subverter os legítimos anseios populares – não eram estas as “revoluções” reclamadas?

Bibliografia

BARBIERI, José Carlos. Produção e Transferência de Tecnologia. São Paulo: Ática, 1990. 181 p.

BARROSO, Aloísio Sérgio; SOUZA, Renildo (orgs). Desenvolvimento – Ideias para um projeto nacional. São Paulo: Anita Garibaldi/Fundação Maurício Grabois, 2010.

CONGRESSO NACIONAL. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre as Causas e Dimensões do Atraso Tecnológico – Relatório Final. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1992. 186 p.

LONGO, Waldimir Pirró e. Tecnologia e soberania nacional. São Paulo: Nobel / Promocet, 1984. 85 p.

MONTEIRO, Adalberto; PALÁCIO, Fábio (orgs). Ciência & Tecnologia para o desenvolvimento nacional. São Paulo: Anita Garibaldi / Fundação Maurício Grabois, 2010. 150 p.

NAZARÉ, Rex. “Renato Archer, um exemplo a ser sempre lembrado”. In: AZEVEDO, Fábio Palácio de (org). Renato Archer, 90 anos: legado e atualidade. São Paulo: Fundação Maurício Grabois / Anita Garibaldi, 2012. 96 p.

JINTAO, Hu. Informe al XVIII Congreso del Partido Comunista de China. Beijing, República Popular da China, 8 de novembro de 2012.

Mantener en alto la gran bandera del socialismo con peculiaridades chinas en una lucha por conquistar nuevas victorias en la edificación integral de la sociedad modestamente acomodada – Texto íntegro del informe presentado ante el XVII Congreso Nacional del PCCh. Beijing: Xinhua, 24 de outubro de 2007.

*Fábio Palácio é Membro da Comissão Nacional de Formação do PCdoB.