El Salvador: vítimas da guerra criticam oposição e pedem direitos

O conflito bélico interno que, entre 1980 e 1992 sacudiu as estruturas de El Salvador, este pequeno país centro-americano, não apenas deixou um saldo de 75 mil mortos e 8 mil desaparecidos, mas também 40 mil pessoas incapacitadas pela guerra, segundo a Comissão da Verdade criada por causa do Acordos de Paz assinados em 1992 no Castelo de Chapultepec, no México.

Por Giorgio Trucchi*, em San Salvador

Guerra civil salvadorenha deixou 40 mil pessoas incapacitadas. Saúde integral e revalorização das pensões são demandas de vítimas| Foto: Reprodução

Os Acordos dispuseram, por meio do decreto 416 – Lei de Benefício para a Proteção de Lesionados e Incapacitados pelo Conflito Armado –, a criação do FOPROLYD (Fundo de Proteção a Lesionados e Incapacitados pelo Conflito Armado, na sigla em espanhol), cujo objetivo era dar a assistência e os benefícios necessários para que os deficientes de guerra e os familiares dos combatentes mortos pudessem ser reincorporados à vida social e ao trabalho. Lamentavelmente, esses objetivos ficaram engavetados por mais de 16 anos.

Israel Quintanilla é presidente da ALGES (Associação de Lesionados de Guerra de El Salvador “Heróis de Novembro de 89”). Ex-combatente das FPL (Forças Populares de Libertação), uma das cinco organizações guerrilheiras que integravam a FMLN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional), força político-militar que, em 1992, se transformou em partido político, Quintanilla sofreu a amputação de uma perna quando pisou acidentalmente em uma mina no município e Berlín, no Estado de Usulután.

Foi detido e preso por mais de um ano sob a acusação de terrorismo e de atentar contra a paz social até ser finalmente libertado. Em 1989, junto a outros ex-combatentes deficientes, fez um protesto em frente à catedral de San Salvador, exigindo atenção médica, e finalmente, conseguiu sair do país rumo a Cuba, onde foi tratado e obteve sua primeira prótese.

“Depois da assinatura dos Acordos de Paz, voltei ao país e me envolvi na luta para que se cumprisse o decreto 416. Em 1997, com o apoio de 400 companheiros e companheiras, fundamos a ALGES e começamos a nos mobilizar, sofrendo a repressão policial que acabou com a vida de três companheiros”, disse Quintanilla a Opera Mundi.

Entre as diretrizes principais da ALGES, que reúne 86% de homens e mulheres deficientes da ex-força guerrilheira FMLN , 7% das forças armadas salvadorenhas e 7% da população civil afetadas pelo conflito armado, Quintanilla destaca “a luta pelos interesses dos deficientes e incapacitados de guerra e o verdadeiro cumprimento da legislação que nos protege”. Atualmente a ALGES tem 7200 pessoas afiliadas – 83% são homens e 17% mulheres -, isto é, quase metade das pessoas que está participando do FOPROLYD, e conta com delegações nos 14 Estados do país.

“A quantidade de pessoas atendidas é mínima em relação à realidade que vive El Salvador. Durante os governos da Arena (Aliança Republicana Nacionalista), com a desculpa de que já tinham sido reabilitados ou que não eram considerados deficientes de guerra os que apresentavam sequelas psicológicas depois das torturas, os benefícios de pensão de milhares de pessoas foram suspensos ou reduzidos. Além disso, o atendimento era péssimo e nos tratavam pior que animais, como se já não servíssemos para nada nessa sociedade”, explicou Quintanilla.

Enfrentando a falta de alternativas e o silêncio das instituições sobre a reinserção de dezenas de milhares de homens e mulheres deficientes de guerra, a ALGES começou a explorar alternativas possíveis. A partir de 2001, assinou convênios com cinco prefeituras, incluindo a capital. San Salvador, para a administração dos serviços de saúde públicos, e atualmente está garantindo emprego formal a 200 pessoas. Também deu início a pequenos projetos rurais com fundos de cooperação internacional.

Luta e reforma

Entre 2004 e 2006, 700 afiliados da ALGES sofreram os danos dessa medida da Arena, o que fez com que a luta fosse intensificada. A ALGES preparou e apresentou à Assembleia Legislativa um projeto de reforma da legislação, que exigia que a suspensão ou corte das pensões já aprovadas cessasse e pedia uma reforma da comissão encarregada de quantificar o grau de incapacitação dos deficientes. Além disso, pediam a incorporação dos beneficiários da lei ao sistema de saúde nacional, para serem atendidos pelas sequelas das suas lesões e o reajuste das pensões.

“Em 2008, já no final do governo de Elías Antonio Saca, a Assembleia Legislativa reformou 49 dos 57 artigos que compõe a lei. Ainda que não tenha sido possível conquistar nossas demandas principais, o resultado de nossa luta foi muito positivo”, afirmou o presidente da ALGES.

Com a reforma, foi possível realizar um novo censo de mães e pais de combatentes mortos, incorporando cerca de 500 pessoas aos beneficiários, modificou-se o grau de deficiência necessário para ter direito à pensão, reduzindo-o de 10% para 6%. Com essa medida, 3500 novas pessoas tiveram acesso à pensão.

O atendimento melhorou, o processo de revisão dos casos foi acelerado, ampliou-se em 100% a quantia paga pela pensão de reversibilidade e o grau de parentesco dos beneficiários, e abriu-se uma linha de crédito no FOPROLYD com juros favoráveis. “Somos estigmatizados. Nos consideram velhos, somos deficientes e recebemos uma pensão baixa. Nós deficientes de guerra já não temos crédito nos bancos e essa reforma está nos permitindo resolver alguns de nossos problemas, como, por exemplo, o acesso a uma moradia”, completou Quintanilla.

Exigências para o novo governo

Nesse domingo, 9 de março, os salvadorenhos e as salvadorenhas vão escolher nas urnas o sucessor do presidente Mauricio Funes. Para a ALGES, muito está em jogo. “Enquanto esteve no poder, a Arena não mostrou nenhum interesse pelas vítimas do conflito. Nos reprimiram nas manifestações, nunca quiseram aplicar a lei e nos atendiam com desprezo”. Quintanilla lembra de como excluíram ou reduziram as pensões de milhares de deficientes, suspenderam a entrega de materiais como medicamentos, bengalas, próteses, cadeiras de roda e estiveram a ponto de fechar o FOPROLYD porque não era rentável para o Estado. “Foi uma barbaridade o que fizeram conosco”, disse o dirigente.

Segundo ele, a atitude desses governos responde aos interesses dos setores da oligarquia empresarial que os apoiou, que não querem respeitar os Acordos de Paz. “Foram os maiores violadores dos Acordos e nunca quiseram garantir nossos direitos porque seu único interesse é administrar o país como se fosse sua própria fazenda e garantir seus lucros”, completou.

Apesar de Quintanilla reconhecer os avanços conquistados durante o governo de Mauricio Funes, como a implementação das reformas em 2008, a melhoria da atenção aos deficientes e a descentralização dos escritórios, o pagamento de 9 milhões de dólares para compensar a falta de pagamento das pensões durante dois anos, assim como a incorporação de cerca de 7 mil novas pessoas ao FOPROLYD e o pagamento do décimo terceiro, entre outros, ele garante que ainda há muito a ser feito.

“Ganhe quem ganhe esse domingo, o novo governo terá de reconhecer que somos um setor importante e emblemático do país, testemunhas vivas e vítimas de algo que nunca mais deve se repetir em El Salvador. Por isso, nunca vamos parar de lutar para que nossos direitos sejam cumpridos”, concluiu o ex-combatente.

Entre as principais exigências, a ALGES destaca o acesso à saúde integral, a revalorização das pensões e um maior orçamento para o FOPROLYD, para que possa atender às necessidades dos deficientes. Além disso, propõe uma reforma total da Lei de Benefício para a Proteção de Lesionados de Incapacitados pelo Conflito Armado, para atualizá-la tendo por base a nova situação do país e as novas exigências do beneficiários.

é correspondente da Opera Mundi em San Salvador