Chico Lopes: "Sociedade precisa refletir e lutar pela verdade"
Em entrevista, o deputado federal Chico Lopes (PCdoB-CE), preso e torturado durante a ditadura militar, fala sobre os 50 anos desde o golpe, data lembrada por todo o País nesta terça-feira, 1º de abril. "Com o tempo, começamos a ver que o regime militar não tinha realmente nenhuma perspectiva de liberdade, que aquilo ia durar muito tempo, que não se sabia o quanto ia durar", recorda Chico Lopes, sobre o ano de 1964.
Publicado 31/03/2014 11:30 | Editado 04/03/2020 16:27
Quatro anos depois, um capitão do exército entra em uma sala da Prefeitura de Fortaleza e sobe a voz: "Quem é Francisco Lopes da Silva?". "Pronto. Eu disse que era eu. E aí fui preso. E trataram a gente já com tortura, com uma série de prisões em quartéis, saco na cabeça, toda essa história", rememora Chico Lopes, afirmando que, cinco décadas depois da tomada do poder pelos generais, a sociedade como um todo precisa refletir sobre o "golpe civil e militar" e lutar pela verdade histórica – "sem vingança, mas com direito de saber quem é quem". Confira:
Em 1º de abril de 1964, qual era o clima político em Fortaleza? Como era a sua vida, o seu trabalho, sua atuação?
Em abril de 1964 eu era servidor municipal, exercia uma função de auxiliar de escritório, na Prefeitura de Fortaleza. Ao entrar na Prefeitura, já fui me envolvendo com as lideranças. Tinha um cidadão que trabalhava na auditoria, Luiz de Oliveira Freitas, que era um grande ativista, só depois de muito tempo eu soube que era ligado ao PCB. Tinha vereadores como Tarcísio Leitão, que depois foram cassados, presos, e um movimento muito forte, liderado pelos ferroviários, pelos marítimos, pelos bancários. As manifestações eram muito envolventes, manifestações pela liberdade ,inclusive. Eu fui me envolvendo. Como ainda era estudante, comecei no movimento estudantil, estudante de contabilidade. Volto à militância através do grêmio, do Conselho de Estudantes do Senac. Isso foi me envolvendo cada vez mais.
Ainda em 1964 você foi indiciado, sentindo pela primeira vez uma consequência mais direta da ditadura militar?
Fui indiciado, como servidor da Prefeitura, pela minha atuação na Associação dos Servidores Municipais de Fortaleza. Respondi a inquérito, só que não encontraram muita coisa ao meu respeito. Em 1964, eu ainda não tinha essa noção do que era a ditadura militar, como um todo, do que ela viria a ser. Com o tempo, começamos a ver que o regime militar não tinha realmente nenhuma perspectiva de liberdade, que aquilo ia durar muito tempo, que não se sabia o quanto ia durar. Já em 68 eu passo no vestibular e sou recrutado pelo PCdoB, convidado para entrar no partido. Aí a gente já estava militando sabendo que se corria perigo. Fui conhecendo pessoas do movimento, como Maria Luiza (que viria a se tornar prefeita de Fortaleza, nos anos 80) e várias outras. Eu tinha feito um curso na Sudene, de educação cooperativista, e entrei num projeto de assentamento de Dom Fragoso, lá em Ipueiras. Daí vieram as prisões, as solturas. Na Prefeitura, sempre a gente era vigiado.
Quando você foi preso? Em que situação?
Fui preso pela primeira vez no Colégio Justiniano de Serpa, dando aula, em 1970, junto com um companheiro da Medicina, Paulo Veras. Ficamos alguns dias na Polícia Federal, até que fomos soltos, porque não conseguiram provar muita coisa da gente. Aí veio a segunda prisão, que foi quando eu tava trabalhando, na Prefeitura. O cara chegou: "Quem é Francisco Lopes da Silva?". Pronto. Eu disse que era eu, e aí fui preso. E trataram a gente já com tortura, com uma série de prisões em quartéis, saco na cabeça, toda essa história. O oficial que me prendeu se identificou como capitão do exército. Passei 30 dias preso, incomunicável. Me levaram pra uma casa de tortura, que tudo indica que é Maranguape (município da Região Metropolitana de Fortaleza). De volta à prisão, saía de manhã pra tortura, voltava, aquela confusão toda. Com 30 dias me liberaram e fiquei lá numa fila com vários militantes de várias organizações. Eles olhavam pras pessoas: "Esse vai pro (ginásio) Paulo Sarasate. Esse não vai". Aí eu não fui. Voltei pra unidade militar e com três, quatro dias me liberaram.
Mesmo depois de prisão e tortura, a luta contra a ditadura continuou. Como foi, para você, esse momento depois da prisão?
Continuava, dentro das formas que eram possível. Eu, depois de preso, voltei, me apresentei na Prefeitura e me colocaram na Auditoria do Município. Mas ali, como em vários outros lugares, o regime tinha pessoas que eram apoiadoras da Ditadura. E daí em diante o partido sofreu muito, mas foi se reorganizando aos poucos. E foi através da Tribuna da Luta Operária que voltei a militar. Lutamos todos os brasileiros, com o que era necessário no momento. A guerrilha do Araguaia estava com dificuldades, tínhamos muitos companheiros presos, torturados. Mas nós continuamos na luta.
Cinquenta anos depois, o Brasil tem maturidade e disposição para encarar esse tema, procurar restabelecer a verdade histórica, como já fizeram outros países da América do Sul que passaram por ditaduras?
Nós lamentamos, depois dessa luta todinha, que os torturadores ainda declarem que não se arrependem do que fizeram. Isso me deixa preocupado. Não é vingança, é justiça. Uma pessoa que diz que fez o que fez e nada acontece, a conclusão que se chega é que ela tinha razão e nós éramos realmente os bandidos. Por isso que a direita no Brasil hoje tá muito afoita, porque tá vendo que não tem reação. A Argentina resolveu isto, o Chile resolveu isso. Aonde teve esses problemas, já foram resolvidos… A gente poderia avançar mais nas questões democráticas. Ensino de qualidade, segurança pro povo, sem todo mundo ficar com medo de sair de casa, um Poder Judiciário sem contaminação política nem com o crime. Evidentemente, estamos hoje melhores do que ontem em determinados aspectos, mas temos muitos problemas a resolver, e a apuração dessa verdade histórica é um deles. Assim como a necessidade que temos de mudanças sociais, de uma reforma tributária à altura, uma reforma política…Faço para da Comissão de Anistia na Câmara dos Deputados e continuamos essa busca, mas acho que o Governo Federal já poderia ter tido uma atitude de abrir mais todos os documentos, todas as informações sobre isso.
Essa ditadura realmente foi patrocinada pelos Estados Unidos e ainda hoje deixa resquícios sobre o nosso País, no comportamento conservador, nas ameaças da direita, na postura conservadora de muitos meios de comunicação. Precisamos ainda refletir muito sobre o golpe, que não foi só militar, foi civil e militar. As pessoas têm que refletir sobre isso. Todo mundo teve sua responsabilidade. A Igreja apoiou no início, mas depois teve um grande papel ajudando na democracia. Dom Fragoso, Dom Pelé, Dom Geraldo, os padres da Diocese de Crateús, de Pernambuco e de muitas partes do Brasil tomaram posição firme contra a ditadura e a favor dos perseguidos. Muitos deles colocaram a cara a tapa na defesa dos direitos humanos. Vários comitês ligados à Igreja Católica participaram ativamente depois da derrubada do regime militar. O povo brasileiro como um todo tem direito de saber a verdade, saber quem é quem, saber quem matou, quem torturou, em nome do Estado. Não por vingança, mas pelo direito à verdade.
Fonte: Assessoria do deputado federal Chico Lopes (PCdoB-CE)