Direito internacional é a estratégia da Palestina, diz ex-chanceler
A estratégia da Organização para a Libertação da Palestina para contornar o impasse nas negociações com Israel é afirmar o Estado da Palestina como ator internacional, mas a responsabilização israelense por crimes de guerra também é prioridade. Em entrevista, o ex-chanceler Nabil Shaath explicou os avanços para a conferência entre Estados parte da Quarta Convenção de Genebra e a votação de uma resolução no Conselho de Segurança da ONU pelo fim da ocupação.
Por Moara Crivelente*, para o Vermelho
Publicado 15/12/2014 19:05

Leia também:
Conselho da ONU pode votar prazo para o fim das ocupações israelenses
Palestina ocupada: opressão e morte são estratégias do regime sionista
Resolução 181: Partilha da Palestina e a ocupação israelense
Palestina-Israel: Diálogos encerram-se com aumento da ocupação
Para o ex-chanceler, a estratégia empenhada pelos palestinos agora é uma alternativa ao impasse estrutural e aparentemente intransponível do “paradigma” enraizado nesse processo de paz. A mediação acabou dominada pelos Estados Unidos, aliados primários de Israel, sem qualquer amostra de intenção real de mudança ou superação do status quo. Durante os últimos 20 anos, o conjunto de acordos que deveriam ser temporários entranhou na Palestina as várias facetas da ocupação israelense, inclusive a proliferação das colônias ilegais e a construção de um muro de oito metros de altura, com mais de 700 quilômetros de extensão, anexando ainda mais porções da Cisjordânia restringindo a movimentação dos palestinos.
Os avanços da ocupação traçam a inviabilidade da chamada “solução de dois Estados”, o consenso internacional para o estabelecimento do Estado da Palestina, vizinho ao de Israel. Além disso, a restrição da movimentação dos palestinos, a segregação relativa aos colonos israelenses (com estruturas e permissões de mobilidade e leis distintas, por exemplo) e as detenções arbitrárias sujeitas à tortura e à falta de julgamentos por longos períodos são amostras das diversas violações da Quarta Convenção de Genebra, assinada em 1949 (inclusive por Israel), “relativa à proteção dos civis em tempos de guerra”.
No texto, as obrigações de uma “Potência Ocupante” estão bem definidas, mas Israel rechaça esta definição por completo, negando a classificação do regime que impõe sobre a Cisjordânia, a Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental, enquanto “ocupação”. Shaath explica: “os israelenses alegam que se tratam de territórios em disputa”, uma forma de esquivarem-se das obrigações estabelecidas pela Convenção. Para isso, mantêm uma narrativa religiosa “de quatro mil anos atrás” segundo a qual o “povo judeu merece” aquela terra. A manipulação da religião ou outras identidades para a colonização não é novidade no caso da Palestina, mas parece nunca ter durado e inculcado tanto.
Por outro lado, a mudança no cenário internacional, de um mundo unipolar dominado pelos Estados Unidos para a multipolaridade, tem impulsionado a questão palestina, continuou o diplomata. “Veja o que acontece com o Brasil, ou a América Latina, onde os países fortalecem suas democracias e sua soberania, como atores importantes no âmbito global.” Com a Europa, a Rússia, o Brasil e outros atores, diz Shaath, “temos a chance de mudar as coisas, tirando as negociações das mãos dos Estados Unidos, pressionando para tornar possível um acordo. Apenas com os EUA como facilitador não fizemos qualquer avanço em 20 anos, pelo contrário!”

em junho, quando a "operação militar Guardião Fraterno" foi lançada na Cisjordânia. (Foto: Reuters)
Alternativas do Direito Internacional
Em 2001, quando Shaath ainda era o chanceler palestino, a Suíça já havia convocado uma conferência entre os Estados signatários das Convenções de Genebra de 1949 para discutir a situação na Palestina. O objetivo foi avaliar as violações israelenses, sobretudo com base na classificação de Israel como “Potência Ocupante” com obrigações. Diversos artigos da Quarta Convenção proíbem a deportação, transferência ou evacuação de habitantes, a destruição de propriedades, a mudança da demografia e a construção de colônias ou transferência da população do ocupante para os territórios ocupados. Também reforçam obrigações sobre o acesso a alimentos e remédios, assistência humanitária, condições de trabalho, condições dignas de vida, julgamentos justos, leis penais, tratamento dos detidos, entre tantos outros. Os artigos são praticamente descrições das violações perpetradas no regime israelense imposto aos palestinos em seus territórios. O Estatuto de Roma ao que os palestinos têm trabalhado para aceder, que constitutiu a Corte Penal Internacional (em vigor desde 2002), também define ações reconhecidas como "crimes de guerra":
A conferência de 2001 resultou num relatório de avaliação contundente sobre as violações israelenses, mas como em outras ocasiões, a pressão política enterrou o documento. Naquele momento, novos ensaios diplomáticos confrontaram-se com o aumento da violência na Cisjordânia, o nascer da segunda intifada (levante) palestina e a repressão israelense, com operações militares e invasões com tanques em campos de refugiados como o de Jenin, onde uma verdadeira batalha aconteceu entre os soldados israelenses e os movimentos da resistência palestina, taxados de “terroristas”, ainda que diversas convenções e resoluções também reconheçam o direito de povos como o palestino a lutar contra a dominação estrangeira “através de todos os meios disponíveis”.
Esta quarta-feira (17), porém, pode ser um dia importante. Além da Conferência entre a maioria dos 196 Estados partes das Convenções de Genebra (que Shaath garantiu ter angariado pleno apoio internacional apesar das pressões contrárias e oposição aberta de Israel, dos Estados Unidos, da Austrália e do Canadá), uma proposta de resolução com um prazo para o fim da ocupação israelense sobre os territórios palestinos também poderá ser votada no Conselho de Segurança da ONU. A proposta deve ser encaminhada nesta segunda-feira pela Jordânia e pela Palestina.
O órgão já lidou com a questão palestina de forma majoritariamente negativa diversas vezes no passado, enquanto os EUA, membro permanente com poder de veto, barraram mais de 50 resoluções que condenariam a política israelense de ocupação. Ainda assim, em 1980, ano em que o governo israelense aprovou leis para a anexação da porção palestina de Jerusalém e de outros territórios ocupados (as leis omitem a palavra “anexação” para usarem os termos “extensão da jurisdição israelense”), a resolução 465 do Conselho de Segurança reafirmava de forma unânime a ilegalidade da construção de colônias israelenses nos territórios palestinos ocupados.
Shaath explica que a proposta de resolução palestina pede um prazo de dois anos para a retirada das tropas e das colônias israelenses (uma contraproposta da França transforma esta parte em um “período para a negociação de um estatuto final”), o estabelecimento do Estado independente da Palestina nas fronteiras de 1967 (anteriores à Guerra de Junho daquele ano, quando Israel avançou na ocupação de territórios palestinos e de outros vizinhos árabes), com Jerusalém Oriental como capital. Esta configuração inclui apenas 22% da Palestina histórica, numa concessão de 78% do território a Israel. É assim que 135 países já reconhecem o Estado palestino hoje, apesar das lacunas estruturais a serem superadas para a sua efetivação.
O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu refere-se às estratégias palestinas como “trapaças” e “agressões diplomáticas”. Seu governo já impôs sanções ao governo palestino, acusando-o de rejeitar as negociações, por exemplo, congelando o repasse dos impostos que recolhe pelas exportações palestinas. Netanyahu reuniu-se com o secretário de Estado dos EUA John Kerry em Roma, nesta segunda-feira, para pressionar contra a resolução. Kerry também deve reunir-se com chanceleres dos países árabes, que afirmaram apoio à estratégia palestina.
Enquanto movimentos massivos em diversos países fortaleceram a demanda contra a política israelense de ocupação da Palestina e das ofensivas reiteradas contra a Faixa de Gaza, a Cisjordânia e Jerusalém Oriental, os esforços no sentido do direito internacional são rechaçados pela liderança israelense ou apresentados quase como atos de guerra. Os apelos populares, inclusive dentro de Israel, pelo fim dessas políticas de um verdadeiro regime de apartheid, são temidos pelo governo israelense, apreensivo com a ideia de ver-se no banco dos réus, finalmente.
*Moara Crivelente é cientista política, jornalista e membro do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz), assessorando a presidência do Conselho Mundial da Paz.