Ana Rocha: Mulheres contra o retrocesso

Chocou a todas nós, feministas, quando a esposa do presidente Temer foi apresentada à sociedade como “Bela, Recatada e do Lar”. No momento em que quase metade da força de trabalho é de mulheres e elas estão em todas as esferas, ainda que sub-representadas na política e no poder, é quase inimaginável para nós acreditar que este é o lugar da mulher. Uma vez que nossa visão é de que o lugar da mulher, hoje, é onde ela quiser.

Por Ana Rocha*

Ana Rocha - Foto: Arquivo pessoal

Esse papel apresentado e cultuado expressa justamente a visão conservadora do novo governo golpista, cujos primeiros atos incluíram a extinção do Ministério da Mulher, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. A visão da mulher-objeto, do lar, recatada, condiz com o atual pensamento neoliberal, que necessita dos cuidados gratuitos da mulher no lar para substituir os gastos com as políticas públicas no geral, e de gênero em especial.

Por isso perguntamos: que tipo de mulher interessa a essa nova ideologia do capital? E onde se situa a mulher na resistência que cresce no mundo, em especial nos países latino-americanos, à política neoliberal?

Vivemos um momento crucial da história, onde o pensamento único neoliberal se alastrou fazendo estragos, inclusive para as mulheres. Que as mulheres avançaram não há dúvida, mas que conflitos, que impasses elas enfrentam hoje para avançar rumo a um futuro melhor, de igualdade e sem opressão?

Ao lado das mulheres que chegaram ao podium, apesar dos obstáculos que a sociedade não vê, crescem os índices de mortalidade materna, de violência doméstica, de precarização das condições de trabalho e manifestações de distúrbios como síndrome de pânico, depressão, estresse, doenças cardiovasculares, etc.

As declarações absurdas do Ministro da Saúde de Temer, de que as mulheres têm mais tempo de ir ao médico, por isso ficam menos doentes, é um verdadeiro disparate… O mercado de trabalho já é partilhado quase de igual para igual com os homens e elas ocupam postos-chave de grandes empreendimentos. Também ganharam respeito, cidadania, voz. Porém, todo esse progresso veio acompanhado de um ônus considerável. Elas ainda recebem 30% a menos do que eles, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e convivem com maior cobrança por resultados. Além disso, hoje são tão provedoras quanto os homens, mas assumem a maior responsabilidade pela criação dos filhos e por atividades relacionadas ao cuidado, no geral. E é por conta dessa segunda jornada que as mulheres vêm apresentando mais estresse do que os homens,, acarretando em depressão e outras patologias.

Em seu livro O Tempo e o Cão, Maria Rita Kehl (2009, p. 22), especifica:

Analisar as depressões como uma das expressões do sintoma social contemporâneo significa supor que os depressivos continuam em seu silêncio e em seu recolhimento, um grupo tão incômodo e ruidoso quanto foram as histéricas no século XIX. A depressão é expressão de mal-estar que faz água e ameaça afundar a nau dos bem-adaptados ao século da velocidade, da euforia prêt-a porter, da saúde, do exibicionismo e, como já se tornou chavão, do consumo generalizado. A depressão é um sintoma social porque desfaz, lenta e silenciosamente, a teia de sentimentos e de crenças que sustenta e ordena a vida social desta primeira década do século XXI.

A vida privada ficou à margem dos avanços no espaço público, a sociedade continua organizada como se a mulher estivesse apenas em casa, afirma Rosiska Darcy de Oliveira (2003). Apesar desse impasse, a mulher esta longe de pensar em abrir mão das conquistas alcançadas. De acordo com pesquisa da Fundação Perseu Abramo, 39% delas relacionaram a condição feminina à independência econômica e 33% à independência social.

E o neoliberalismo?

O fato é que as mulheres avançaram em sua presença no espaço público, mas mantiveram a dupla jornada que afeta suas vidas e aumenta seus impasses, estresse e sobrecargas. Para entendermos como o neoliberalismo aprofundou essa sobrecarga e trouxe uma ameaça de retrocesso na condição da mulher, é necessário abordarmos em que consiste a ameaça da ideologia neoliberal no mundo. Segundo Atílio Boron (1999), essa ameaça pode ser vista em quatro dimensões:

a) A avassaladora tendência a mercantilização de direitos e prerrogativas conquistados pelas classes populares ao longo de mais de um século de luta, convertido agora em “bens” ou “serviços" adquiríveis no mercado. A saúde, a educação e a seguridade social, por exemplo, deixaram de ser componentes inalienáveis dos direitos de cidadão e se transformaram em simples mercadorias intercambiadas entre “fornecedores" e compradores à margem de toda definição política; b) O deslocamento do equilíbrio entre mercados e Estado, um fenômeno objetivo que foi reforçado por uma ofensiva no terreno ideológico que “satanizou” o Estado ao passo que as virtudes dos mercados eram exaltadas. Qualquer tentativa de reverter esta situação não só deverá enfrentar os fatores estruturais, mas também, ao mesmo tempo, se haver com potentes definições culturais solidamente arraigadas na população, que associam o Estatal ao mau e ineficiente, e os mercados ao bom e eficiente; c) A criação de um “senso comum” neoliberal, de uma nova sensibilidade e de uma nova mentalidade que penetraram profundamente no chão das crenças populares. Temos, consequentemente, por um lado, crenças e mentalidades ganhas pela pregação neoliberal e, por outro, teorias e ideologias que avalizam e reforçam as primeiras e, simultaneamente, exprimem e defendem com grande eficácia os interesses do capital; d) Importante vitória no terreno da cultura e da ideologia, ao convencer amplíssimos setores das sociedades capitalistas de que não existe outra alternativa. Essa operação ideológico-cultural é o coroamento da ofensiva econômica e política do grande capital: não apenas se diz que a escravidão do trabalho assalariado não é assim, mas que é a “ordem natural” das coisas. Além disso, é rejeitado como ilusório fantasioso todo discurso que se atreva a dizer que a sociedade se organiza de outra maneira (BORON, 1999).

A evolução da realidade desde o início dessa política vai evidenciando que o projeto ideológico do neoliberalismo é essencialmente conservador, que procura defender e aumentar os privilégios de uma ínfima minoria a nível mundial. Ganhou espaço em meio à crise do capitalismo, do esgotamento do modelo do Estado benfeitor e do fracasso de experiências socialistas. É conservador por querer impor um pensamento único ao mundo e decretar o fim da história. Essa visão é conservadora na cultura e nos costumes, para perpetuar o status quo. Esse conservadorismo se expressa, entre outros campos, no tratamento que dá à questão de gênero, revestindo de novas roupagens o espaço doméstico para a mulher.

A ideia do Estado mínimo levou à redução dos equipamentos sociais, como creches, e à precarização das políticas públicas na educação, saúde, habitação e saneamento no Brasil. Essa redução levou a um aumento da sobrecarga doméstica para as mulheres. Além disso, a exclusão social, efeito da politica neoliberal, trouxe um aumento do desemprego e a flexibilização no mundo do trabalho, com maior impacto para as mulheres. Estas passaram a enfrentar a maior precarização do trabalho formal: têm menor índice de registro em carteira, menor índice de contribuição para a previdência, o menor índice de sindicalização. 51% das brasileiras que integram a População Economicamente Ativa (PEA) não possuem renda mensal regular. A precarização das condições de vida favoreceu a desagregação do núcleo familiar, sobrecarregando ainda mais as mulheres, que em grande parte passaram a ser chefe de família (39% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres, segundo o IBGE).

Se a luta pela sobrevivência empurra as mulheres para o mercado de trabalho e, se nas condições de crise do capitalismo e de aplicação de seu ideário neoliberal reduz a responsabilidade pública dos equipamentos sociais, essa realidade afeta a subjetividade feminina, produto de uma história de opressão, responsabilizada pelos afazeres domésticos e carregada de culpa pela impossibilidade de conciliar sua realização profissional e a perfeição dos papéis seculares que lhe foram atribuídos como “rainha do lar”. Como afirmou Rosiska Darcy de Oliveira (2003, p. 45-46):

A família sempre foi o lugar não apenas do sustento material, ninho, abrigo, mas sobretudo o lugar primeiro da educação, ali onde os seres humanos são iniciados à sua própria humanidade. Assumida essencialmente pelas mulheres nas sociedades tradicionais, no momento em que essas sociedades entram em decadência e que as mulheres investem tempo integral no mercado de trabalho, a atenção de pessoa a pessoa se vê esvaziada. É nesse momento que intervém o pensamento conservador, sempre pronto a acusar as mulheres de todos os males do mundo, das taras sociais, da perdição dos jovens ao abandono dos velhos.

O pensamento conservador sempre dividiu o mundo em esferas estanques, em que as mulheres cuidavam das pessoas e os homens se voltavam para ganhar dinheiro. A ideologia neoliberal, de cunho conservador, ressuscita o velho discurso de que às mulheres cabe a responsabilidade das tarefas domésticas. E, como não há hoje esse caminho de volta, fica a punição da mulher: multiplicar-se em muitas, ao longo do mesmo dia – acompanhada pela culpa ou incompetência em tudo que faz.

A partir de Vigotski, a psicologia sócio-histórica propõe estudar os fenômenos psicológicos como resultado de um processo de constituição social do indivíduo, em que o plano intersubjetivo, das relações, é convertido, no processo de desenvolvimento, em um plano intra-subjetivo. Para a psicologia socio-histórica a subjetividade reflete a condição social, econômica e cultural em que vivem as pessoas. Falar de subjetividade é falar da objetividade em que vivem as pessoas.

A partir dessa visão de subjetividade é que podemos procurar entender as mudanças ocorridas no cotidiano das mulheres com o advento do neoliberalismo e seu impacto na subjetividade feminina.

O neoliberalismo coloca um novo impasse para a sociedade: se o Estado abre mão de seu papel nas políticas públicas, não pode culpabilizar ou responsabilizar as mulheres para assumir essa responsabilidade. Uma nova articulação entre a vida privada e o mundo do trabalho torna-se necessária para que se possa preservar o direito de ambos os sexos de usufruir ambos os mundos, sem sacrifícios individuais. A revalorização da vida privada não deve passar pelas mulheres, mas é um desafio do conjunto da sociedade.

O avanço das mulheres de participar da vida pública não basta. Torna-se necessária a desconstrução/reconstrução para mulheres e homens, dos valores e das práticas predominantes. Como afirma Clara Araújo (2005, p. 46):

Seria necessário um novo enfoque sobre a cultura de gênero, que repensasse como homens e mulheres poderiam compartilhar do mesmo modo e, igualmente, todas as modalidades de trabalho produtivo e reprodutivo existentes. Nesse caso, haveria de ser considerada, de modo mais profundo, a existência de uma “subjetividade coletiva” e de uma dimensão ideológica que não respondem de forma tão rápida como as mudanças na superestrutura jurídico/política. Além das ações reguladoras, são fundamentais as ações educativas e transformadoras.

Torna-se claro porque Juliet Mitchel (1967) considera que a total emancipação das mulheres é a revolução mais longa. Nesse sentido, as desigualdades entre mulheres e homens só serão superadas com mudanças radicais e de fôlego.

Desafios para o avanço

O contraditório se impôs na vida das mulheres. Há quem diga que elas foram com muita sede ao pote da liberdade e das novas responsabilidades sociais e que muitas delas estariam percorrendo o caminho de volta ao lar. Mas, na verdade, as mulheres atravessaram uma fronteira e o caminho percorrido historicamente não tem volta. O retorno ao lar, à moda antiga, não é mais possível. Não dá para ignorar, no entanto, que o avanço das mulheres em seu papel social acarretou contradições, conflitos, condições de vida adversas, com grandes sacrifícios pessoais, que em determinados momentos implicam recuo em sua ascensão profissional, social e política. São as amarras de uma libertação inconclusa, próprias de uma sociedade de exploração da força de trabalho, marcada por uma ideologia dominante de opressão, que reforça o papel de submissão e de objeto da mulher. O papel de provedora do lar é reforçado em um mundo de poucos empregos e de quase nenhum suporte social do Estado. Qualquer tentativa de negar o papel social da mulher hoje só pode vir de uma ideologia conservadora alienante para acomodar os excluídos e impedir sua conscientização da necessidade da luta política por mudança.

Como em toda a história de opressão da mulher, ela é alvo preferido da ideologia alienante para impedir os avanços sociais. Por isso, mais do que nunca devemos estar atentos em reforçar as conquistas das mulheres e sua luta nas diversas esferas de atuação, contestando as visões equivocadas e o rebaixamento de seu papel, seja na dimensão individual, seja na dimensão de sujeito da história, na resistência ao atraso e em prol do avanço social. O período de governos populares e democráticos na América Latina e em particular no Brasil, muitas foram as Políticas Públicas de combate à miséria e de combate à discriminação de gênero e raça, descortinando conquistas e avanços para as mulheres. Os principais eixos das Políticas Públicas, nesse período visavam a autonomia econômica e igualdade no mundo do trabalho; ações na área de infraestrutura social no meio rural e urbano, com ênfase nos equipamentos sociais; ações de promoção da cidadania das mulheres, garantindo a ampliação de seus direitos, nas áreas de educação, saúde e serviços públicos; de enfrentamento à violência contra as mulheres, com ações de prevenção, com ênfase na efetivação da Lei Maria da Penha.

Mas o fato é que voltamos a viver o retrocesso em muitos desses países, como o Brasil, alvo de um golpe antidemocrático em 2016, que realiza um verdadeiro desmonte das políticas públicas de gênero. Uma nova agenda política, econômica e social entra em ação no Brasil, reforçando a financeirização e o modelo neoliberal. No universo das mulheres, entrou em pauta a resistência ao desmonte das políticas públicas e em defesa da democracia, contra o avanço do conservadorismo. Por nenhum direito a menos.   

*Ana Rocha é Mestra em Serviço Social pela UERJ e especialista em Políticas Públicas e Governo pela UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil. Psicóloga, jornalista, ex-Secretária de Políticas para as Mulheres do Município do Rio de Janeiro, Coordenadora do Centro de Estudos e Pesquisa da União Brasileira de Mulheres (UBM), Assessora de Gênero do Sindicato dos Comerciários do Rio de Janeiro.

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