Mortos sem sepultura

No dia 30 de janeiro de 1933, Adolf Hitler foi nomeado primeiro-ministro da Alemanha. Teve início um dos períodos mais sofridos da humanidade. O capitalismo aderia à ditadura terrorista aberta para impor seus interesses, através do fascismo e do nazismo.

O Brasil foi agraciado com a presença de Paulo Rónai, um húngaro que deu imensuráveis contribuições à nossa cultura inclusive a apresentação aos brasileiros do pequeno romance Meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnar, e a edição dos 17 volumes de A Comédia Humana, de Balzac. Abaixo reproduzo trechos de um texto de Paulo Rónai, escrito em dezembro de 1947, e que é um retrato da crueldade do terror aberto capitalista. Boa leitura!



O poeta de Bor



Nada tive e nunca terei coisa alguma.
Vem, pois, meditar um momento sobre esta vida rica

Nicolau Radnóti, Céu Espumante



Acaba de me chegar às mãos o primeiro livro da Hungria, depois da guerra. É um volume de versos intitulado Céu Espumante, da autoria de Nicolau Radnóti. Segundo os jornais húngaros, Nicolau, de quem me despedi em Budapeste há seis anos, agora é considerado um clássico da literatura de seu país, e, como todos os clássicos, está morto. Céu Espumante reza a orelha é a última mensagem de Nicolau Radnóti, do campo de Bor.



Embora já soubesse do desaparecimento de Nicolau, só agora que a vejo impressa, a notícia de sua morte se torna uma realidade para mim. Há dias estou carregando comigo o livro e a notícia que me doem como uma ferida, que me levam, apesar de tamanha distância no tempo e no espaço, a inquirir as causas e o sentido dessa gente.



É preciso dizer primeiro quem era Nicolau Radnóti. Era um poeta no velho e sagrado sentido da palavra, um dos raros que se identificam totalmente com a sua poesia em, além de escrevê-la, vivem-na. Com trinta e pouco anos, era uma grande e eterna criança, um homem da raça de São Francisco de Assis, para quem as únicas realidades são as flores e os bichos, o céu, o sol, as nuvens, um artista da raça dos pintores italianos da Renascença, para os quais o acontecimento era um encontro com a beleza. Nunca vi homem mais feliz. …



É preciso dizer, agora, o que era o campo de Bor. Segundo algumas notícias de jornal e o testemunho de alguns deportados, era uma das variantes mais aperfeiçoadas do Inferno fascista, em nada inferior a Buchenwald ou a Bergen-Belsen. …



Como pôde Nicolau Radnóti tornar-se o poeta de Bor? E ainda: por que levaram Nicolau Radnóti, para morrer, ao campo de Bor? …



A riqueza dos ricos não lhe despertava inveja; não lhe doía senão a pobreza dos outros. Mas tinha de morrer. Nasceu judeu. …



Sabia que ia morrer. Sabia-o desde 1937, quando sobre Garcia Lorca escreveu esses versos:



Porque a Espanha gostava de ti
E os amantes diziam teus versos
Eles, quando vieram, que haviam de fazer?
Eras poeta, mataram-te.



Dois anos depois, confirmava-os aplicando-os conscientemente  ao seu próprio caso:



Acreditai, acreditai no que digo:
A suspeita prudente não me afaga em vão.
Sou poeta que serve só para a fogueira,
Porque é testemunha da verdade.
Porque sabe que a neve é branca,
que o sangue é vermelho e vermelha a papoula,
e o caule franzinho da papoula é verde.
Poeta, a quem acabam por matar,
Por isso que ele nunca matou.



Suas últimas palavras evocam os amigos mortos que, sem sepultura, dormem em matas longínquas e em pastagens estrangeiras; depois, foi juntar-se a eles.



Nicolau, consolar-te-ia saber que tua esposa e teus versos sobreviveram? que a tua voz se ouve ainda e se ouvirá? Que estás conosco bebendo no nosso copo, sentado à nossa mesa, escondido no sorriso das mulheres? que alguns dos antigos companheiros espalhados pelo mundo afora, roídos pela vergonha e pelo remorso dos sobreviventes, murmuram teus versos, e, desesperadamente, procuram crer que não morreste em vão?

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