“A Quase Verdade” :Lições para quem sofre de amor
Personagens do filme do francês Sam Karmann vivem em busca de quem satisfaça seus desejos e se mostram insatisfeitos com seus parceiros e a vida amorosa que levam.
Publicado 18/04/2008 19:58
Cada filme vale o que apresenta ao longo de sua narrativa. Como se vendesse uma proposta ao espectador e este a aceitasse pelo que vê na tela e não tentasse encontrar nele significado algum. Nenhuma relação haveria entre o que ele viu e a realidade que o circunda. Ao deixar o cinema estaria em paz com a sua consciência; afinal tudo não passa de ficção e ficção é apenas projeção da mente do diretor/roteirista, não algo que espelhe sua vivência, a partir das relações sociais e políticas que pautam sua vida. Tal é a impressão que se tem ao assistir “A Quase Verdade”, do francês Sam Karmann. Tudo em seu filme está camuflado no comportamento dos personagens, dominados por uma tensão e insatisfação que incomodam. Nada ali se encaixa, dada à perambulação que eles fazem ao redor de si mesmos, à procura de quem satisfaça suas buscas, camufladas num desejo que não se materializa. Suas ações encerram em si mesmas, como se nada ao redor pudesse interferir em seu mundo.
A procura do outro se dá nas trocas de parceiros, nas fugazes relações, traições e tendências ao martírio, traduzidas numa dor comum a cada um deles. É como se perambulassem pelo shopping, com centenas de produtos nas vitrines, e tivessem de escolher um deles. As características dos parceiros teriam de se encaixar no modelo almejado para satisfazer seus desejos. Só um deles, a exemplo do produto que se quer, atenderia ao desejado. E uma eterna ciranda se abriria a partir daí, pois ele teria de ser checado, através da convivência cotidiana. Esse padrão estabelecido para o outro deveria se assemelhar ao descrito nas revistas de moda para a estação outono/inverno, por exemplo. Segue, enfim, às inconstâncias e inseguranças provocadas pelo capitalismo globalizado, que induz a criação de um produto novo a cada estação, e transfere esta fórmula para as relações amorosas, incentivando seguidas mudanças de parceiro.
Tendência atual é arriscar tudo sem temer as conseqüências
Assim, a relação estável não espelha fielmente a convivência de um casal moderno. Sim, o testar de um novo parceiro para cada situação vivida, como se consumisse um produto de acordo com o que dita a moda para esta ou a próxima estação. Os personagens de “A Quase Verdade” traduzem estas idéias submersas, em seus constantes deslocamentos de um espaço para outro, camuflando intenções e ações. Anne (Karin Viard), apresentadora de um programa de variedades na TV, vive com Thomas (o diretor Sam Karmann), mas anda as voltas com o ex-marido Marc (Françóis Cluzet), casado com Caroline (Julie Delarme), que se sente bem com Thomas. Nestas relações circulares entra o escritor de biografias Vincent (André Dussollier), espécie de anjo exterminador, que a todos cativa. Todos são dominados pela sensação de perda a ser compensada pelo outro, ainda que este lhe gere constante insatisfação. Apenas os riscos os mantém vivos.
Não é outra a tendência atual, gerada pela especulação financeira, de arriscar tudo, sem avaliar as conseqüências. Marc, oscilando entre Anne e Caroline, é o modelo perfeito deste tipo de pessoa. Empresário da área imobiliária, vive de encontrar empreendimento ao gosto do cliente, enquanto pende entre uma relação amorosa e outra. Inseguro, ele quer prender a si as duas mulheres e não ter compromisso algum, com ambas. Enquanto Thomas, o mais equilibrado deles, cuida do filho, do cão do amigo e deixa a mulher hesitar entre ele e o parceiro fugaz (ou não tão fugaz assim). Karmann usa o recurso da comédia, da situação-limite, para mostrar o ridículo a que se submetem os personagens, símbolos da alta classe média francesa, cuja existência está presa a ações superficiais. Nenhum dos personagens deixa sua vida fluir às claras, há sempre algo a encobrir suas intenções e atos. Uma mentira aqui e outra ali e seguem em frente.
Riso não escrachado reflete grotesco das buscas de parceiros
Como se trata de comédia, Karman usa a rapidez, a correria, a mudança de ambientes, e o fio da navalha onde tentam se equilibrar os envolvidos. O riso vem mais das situações, do que dos esforços dos atores, salvo por Cluzet, que faz um Marc hesitante, capaz de entrar numa situação e sair dela com a desculpa mais esfarrapada. O riso, no entanto, não é escrachado, reflete mais o grotesco das procuras que os desencontros provocados por quem não sabe optar por um dos parceiros. Mas, por outro lado, estas oscilações refletem os encontros e desencontros dos casais modernos, que longe de se contentar com um único parceiro, saem à procura de quem satisfaça parte de seu eu. Ou seja, os parceiros nunca satisfazem in totum os desejos do outro. Há necessidade de um terceiro para que a relação seja completa. E, então, Karmann introduz o inusitado numa seqüência em que Vincent se encontra com Marc. Este sai do encontro submetido a uma nova experiência e todo seu desequilíbrio se desconstrói.
Estas, por outro lado, são os matizes da narrativa que o espectador vê desenrolar-se diante de si. Os espaços da alta classe média, onde se dá a ação, são amplos, decorados com peças e móveis sofisticados. Quando se deslocam para outros espaços, estes se revelam uma extensão de suas vidas, como o trem-bala, os hotéis de luxo, os ambientes sofisticados onde trabalham e se encontram em suas fugazes relações extraconjugais. Existem, porém, outros matizes, menos à vista, que dominam a narrativa, como subtextos, mas que a fazem ir adiante e dão ao filme o clima de vida, paixão e mistério. Algo presente nos filmes de Richard Quine (“Aconteceu num Apartamento”, “Sortilégio do Amor”), em que a malícia não está no mostrado durante, mas no antes e, principalmente, no depois, com elipses dominando a narrativa. A beleza dos cenários e a leveza das situações levam o espectador ao sonho, fato difícil de encontrar nos filmes atuais, em que tudo é explícito, para consumo rápido e total, mesmo com o risco de gosto amargo na boca, depois.
Vincent e Anne trocam confidências sem cair na licenciosidade
Karmann escapa às situações grotescas, aos diálogos eivados de frases de duplo sentido, cheias de palavrões, usando frases que traduzem a contento o estado de espírito dos personagens. Na seqüência que Anne se vê presa com Vincent num hotel do interior da França, enquanto cai um temporal, eles se fazem confidências sem cair na licenciosidade. O que conta ali não é a dramaticidade da ação, sim as nuances. Eles são adultos e não precisam escancarar sua vida amorosa e suas tendências sexuais. Menos implícitas são as criticas feitas por Karmann à mídia, embora no mesmo tom indireto. Anne, produtora do programa de sucesso, “Sobre a Mesa”, usa dos mais rasgados e criticáveis expedientes para escapar à perda do espaço. E diz que esta é a forma de se vender uma proposta de programa na televisão. Escrúpulos, ética, moral e respeito ao público e ao produtor cultural, no caso, o biografo Vincent, ficam relegados a plano secundário.
Idêntico comportamento tem a escritora de livro de auto-ajuda, Rose-Marie, que busca atender à sua editora, cuja tendência é apresentar ao leitor uma obra como definidora do padrão cultural do momento. Ela, a escritora, tem apenas de seguir a moda, obedecer a certas regras e, a partir daí, ver seu livro se transformar num best-seller. Na conversa que Rose-Marie tem com Vincent, ela lhe passa esta fórmula, ao que ele nada responde. Ser parte da engrenagem não está em seus planos. A máquina, no entanto, tem suas armadilhas, como se vê durante o filme. O artista deixou de ser um ente à margem do mercado, transformou-se num trabalhador cultural, devendo considerar, caso queira que sua obra chegue ao público, as possibilidades que lhe impõe a estrutura da indústria cultural (editora, gráfica, agência publicitária, mídia, livraria). É pago para isto, sem ser dono de sua criação, a exemplo do operário na fábrica, embora tenham status diferentes.
Engrenagem capitalista transformou o artista num trabalhador cultural
Esta engrenagem que faz girar o capital retirou-lhe a aura de integrante da superestrutura. O sistema mantém seu status, mas retirou-lhe o controle sobre o seu produto. Vicente percebe isto e tenta mais usar do que ser usado. Busca, em meio aos encontros e desencontros amorosos, expor ao público as potencialidades do personagem que engendra, usando a mídia. Este é um dado importante em “A Quase Verdade”. Aparentemente fala sobre o amor em tempo de maturidade, com entrechos que mesclam crítica à indústria cultural, mas na verdade, é um filme sobre buscas de alternativas nestes conturbados tempos globalizados em que tudo virou mercadoria, inclusive as próprias relações amorosas, pautadas por consultas a gurus modernos, que cuidam da plástica, do corpo, da cabeça, do vestuário, da cultura, da saúde e do lazer.
Karmann faz seu filme trafegar por estas questões, embalado por acordes de jazz, que dão a seu filme a sofisticação e o clima das comédias inteligentes da década de 50. E lhes acrescenta nuances e pertinências dos tempos atuais, com suas implicações profundas e arriscadas. Dentre elas a de se apropriar dos comportamentos tidos como modernos, que são mostrados como saudáveis, enquanto escondem sofrimentos e renúncias muitas vezes difíceis de aceitar. Quando Anne regressa à sua casa, depois de um tempo fora, tenta abrir-se com Thomas, este entende suas intenções e mostra-se compreensivo. Ela, porém, não queria isto; está por demais machucada para aceitar o modo como ele reage. Fica a impressão de que Thomas está deslocado em seu tempo. Seu temperamento não condiz com a tendência à superficialidade que domina as relações destes tempos de relações fugazes, cheias de subterfúgios, que trazem mais dor que felicidade.
“A Quase Verdade” (La Vérité ou presque). Comédia. 2006. França. 95 minutos. Roteiro: Jérôme Beaujour, Sam Karmann, Stephen McCauley. Direção: Sam Karmann. Elenco: Karin Viard, André Dussollier, Françóis Cluzet, Brigite Catillon, Julie Delarme, Sam Karmann.