(2) A crise e a libertinagem financeira

A proposta do controle de fluxos de capital adquire maior relevância com as recentes turbulências no mercado financeiro mundial. Nas últimas semanas, a mídia tem atormentado a sociedade com as tenebrosas notícias de queda na bolsa de valores, elevação do

Conforme relata um excelente artigo na revista Carta Capital, passados dez anos do colapso no México, que abriu a temporada recente de crises financeiras pelo mundo, o planeta ficou ainda mais perigoso. Os países, principalmente os periféricos, estão cada vez mais vulneráveis. Cerca de US$ 2,6 trilhões circulam diariamente pelo globo sem qualquer controle. ''A situação dos fluxos de capitais internacionais tornou-se um pesadelo no mundo'', explicou à revista a especialista estadunidense Jane D'Arista [1].


 


 


O nó do tripé neoliberal


 


 


Esse fantasma agora ronda a economia brasileira – e deixa em apuros os mercadores de ilusões infiltrados no governo Lula – exatamente devido à total liberdade do fluxo de capitais. Encarado como dogma pelos adoradores do deus-mercado, o livre fluxo compõe o tripé satânico da política macroeconômica neoliberal – junto com os juros estratosféricos e o elevado superávit primário. Através deste mecanismo, o Estado é colonizado e se transforma numa máquina de transferência de riqueza do setor produtivo para a oligarquia financeira internacional. Esta libertinagem inviabiliza qualquer controle público sobre a entrada e saída de dinheiro no país; ela impede que o governo implemente uma política econômica alternativa, soberana.


 


 


Em certo sentido, a livre de circulação de capitais é o nó que ata as outras duas pontas deste tripé satânico. Pressionado pela brutal dívida pública, o governo é forçado a manter os juros nas alturas para atrair novos capitais que permitam o precário funcionamento da economia. Ao mesmo tempo, ela ajuda a entender o irracional processo de sucção do superávit primário. Este arrocho fiscal é exigido pelos credores para dar tranqüilidade ao deus-mercado e para atrair novos capitais externos. O resultado deste modelo nefasto é conhecido pelos brasileiros: a economia fica estagnada, o desemprego bate recorde, a renda despenca, o Estado tem fragilizada a sua capacidade de investimentos na infra-estrutura e nas áreas sociais.


 


 


Estado é refém dos rentistas


 


 


Na outra ponta, o dinheiro flui livremente para os ricos banqueiros. Só em 2003, o Brasil pagou R$ 145 bilhões apenas com juros. Isto representa cinco vezes mais que os investimentos previstos na Saúde (R$ 27 bilhões), oito vezes mais que em Educação (R$ 18 bilhões), 28 vezes mais que em Transporte (R$ 5 bilhões), 47 vezes mais que em Segurança Pública (R$ 6 bilhões), 70 vezes mais que em Ciência e Tecnologia (R$ 2 bilhões), 140 vezes mais que em Reforma Agrária (R$ 1 bilhão) e 700 vezes mais que em Saneamento. ''Se as sociedades não têm meios para exercer a sua soberania sobre os capitais externos, só lhes resta cativá-los eternamente, oferecendo-lhes os rendimentos que eles exigirem'' [2].


 


 


Esse mecanismo, tão idolatrado pelos neoliberais, ainda tem outros efeitos perversos. Faz com que o risco de abruptas crises cambiais se torne permanente, já que a qualquer momento os investidores podem deixar o país — e este perigo é instantâneo, on-line. Esta ameaça reforça ainda mais o poder do capital financeiro, que a usa como forma de chantagem. O Estado vira refém, sendo forçado a fazer sempre mais concessões — reformas liberalizantes, autonomia do BC, etc. Como analisa o deputado Sérgio Miranda, este poder descomunal só prova que o controle de capitais ''é uma pré-condição para se debater a política econômica, pois não temos nenhum instrumento para combater esta ditadura do capital financeiro'' [3].


 


 


Reforço à vulnerabilidade externa


 


 


Esta tirania ficou patente quando o governo Lula anunciou a retomada das contratações no setor público (congeladas desde Collor de Mello), abriu as negociações para reajustar os salários dos servidores (também arrochados há anos) e prometeu subsídios para a reforma agrária devido ao ''abril vermelho''. Na ocasião, as agências de risco (JP Morgan e Chase) elevaram as notas do famigerado ''risco Brasil'', numa típica chantagem, o que derrubou as ações da Bovespa e aumentou o dólar. A própria mídia burguesa não vacilou em interpretar estes relatórios como ''puxões de orelha'' no governo Lula por ter ''cedido demais''. Segundo o economista Marcos Antonio Cintra essa chantagem evidenciou os malefícios do tripé satânico.


 


 


''O modelo macroeconômico, ancorado no superávit primário, na meta de inflação e no cambio flutuante, restringe o raio de manobra das políticas domésticas. O relatório do JP Morgan simplesmente explicitou essas vulnerabilidades, interna e externa, sabidas por todos'', explica Cintra. Para ele, esta tensão tende a aumentar nos próximos meses, o que pode comprometer de vez o programa de mudança do governo Lula. ''A ameaça de fuga de capitais é permanente, uma espada sob a cabeça do presidente do BC e do ministro da Fazenda. Uma operação de remessa de recursos para o exterior, mediante a famosa conta CC-5, dura 15 minutos'' [4].


 


 


Estímulo às atividades ilícitas


 


 


Outro efeito pernicioso do livre fluxo de capital, que só agora começa a vir à tona no país, é o incentivo às atividades ilícitas. Aproveitando-se da libertinagem financeira, da ausência de regulamentação e controle, grande parte das atividades ilegais que degradam o planeta, como a corrupção, o tráfico de drogas, de armas e de partes do corpo e o crime organizado, encontra o ambiente ideal para sua valorização e legalização. A CPI do Banestado, que apurou as denúncias da evasão ilegal de bilhões de dólares, descobriu novos traficantes, contrabandistas e políticos corruptos que utilizam os serviços ''idôneos'' dos bancos para a lavagem de dinheiro sujo e para a remessa de fortunas aos paraísos fiscais do exterior.


 


 


Só através do sinistro expediente da Carta Circular número 5, a famosa CC5 do Banco Central que sofreu drástica adulteração no governo FHC, bilhões sumiram do Brasil. ''Pelas chamadas CC5 em geral, graças à liberalização, no período compreendido entre os anos de 1996 e 2002, saíram do país 219,2 bilhões de reais, perto de 80 bilhões de dólares… Em meados do ano passado, a polícia parisiense deteve por várias horas o ex-prefeito Paulo Maluf e sua esposa Sílvia em Paris, por conta de uma transferência de reais de conta brasileira que se transformou em 1,7 milhão de euros no Credit Agricole na capital francesa'' [5].


 


 


Como se observa, o mundo vive sob a ditadura das finanças. A fração hegemônica do capital, a oligarquia financeira, manda e desmanda; manipula governos; arruína as economias nacionais; legaliza operações ilícitas. Enquanto as populações votam a cada quatro anos, as agências de risco e as instituições mundiais do capital, como o FMI e o Bird, ''votam'' a cada minuto, on-line. A movimentação financeira é frenética, sem qualquer controle. Ainda em 1998, estimava-se que o volume anual de transações chegava a US$ 380 trilhões de dólares, o equivalente a US$ 1,5 trilhão por dia. Hoje, o mercado financeiro especula com U$ 2,6 trilhões ao dia; enquanto isso, a humanidade é lançada diariamente na mais deprimente barbárie.


 


 



Notas


 


 



1- Flávia Pardini. ''O aspirador de grana''. Revista CartaCapital, 5/5/04.


2- Antonio Martins. ''Alternativa ao caos''. Portal Planeta Porto Alegre.


3- Nelson Breve. ''Debate sobre controle de capitais chega ao Congresso''. Carta Maior, 16/03/04.


4- Daniel Merli. ''O abutre e sua gaiola''. Portal Planeta Porto Alegre.


5- Raimundo Pereira. ''O Banco Central dos fora-da-lei''. Revista Reportagem, fevereiro de 2004.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho