“Inimigos Públicos”: Traído pela imagem
Em paralelo entre os anos 30 e os tempos atuais, o diretor Michael Mann traça perfil do assaltante de banco, John Dillinger, mostrando como a fantasia e a realidade podem se fundir quando o comportamento dos criminosos se assemelha aos dos dignatários do poder financeiro.
Publicado 11/09/2009 00:28
Há sempre um mal estar nos filmes de Michael Mann. Algo que incomoda o espectador. Seus personagens não conseguem escapar a seus estigmas. Enredam-se de tal forma em suas tramóias que os impasses se multiplicam. Uma herança dos filmes policiais das décadas de 30 e 40, quando Humphrey Borgart, James Cagney e Edward G.Robinson acabavam caídos num beco ou caminhavam para uma cilada. A morte deles era, assim, inevitável. O espectador a esperava. Predominava sempre a sensação de que eles agiam fora da lei, tendo fugazes momentos de paixão, devaneios com a liberdade e nenhum futuro. Afinal, o determinava a censura dos EUA, através do Código Hayes, e o maniqueísmo imperava. Hoje, diante de tanta falcatrua, até mesmo os antiheróis das novelas se apegam às contradições do cotidiano. A realidade, vista na telinha, contradiz cada um daqueles filmes. Afinal, escândalos políticos, financeiros e a impunidade impõem ao espectador outro olhar. Mais realismo, menos fantasia, códigos ficcionais, projeções de um mundo imaginário. Mann, por outro lado, faz uma leitura daqueles anos, em “Inimigos Públicos”, confrontando esta suposta divisão de campos entre a realidade e a ficção.
Para ele, os fundamentos do crime financeiro estão na maneira como falsários, golpistas ou assaltantes usam o produto do roubo. Não se perdem em espeluncas, cercados de gente mal encarada, mal vestida e reacendendo a álcool barato. Eles veem o crime como uma forma de ascensão social, usando o dinheiro para frequentar os mesmos lugares que a alta burguesia. Estão sempre bem vestidos, ternos bem cortados, gravatas sofisticadas, camisas finas, chapéus estilosos e, supremo gosto, óculos que destacam suas belas estampas. Desta forma, se confundem com gente de bem, respeitáveis homens de negócios, profissionais batalhadores, estrelas que se confundem com o céu. E por transitarem pelos mesmos espaços gozam dos mesmos privilégios. Muitos, a exemplo de Juan Carlos Abadia, chefão do tráfico de drogas latinoamericano, refugiam-se em mansões ou em espetaculares apartamentos de andar inteiro, com piscina. A respeitabilidade, conferida pelo lugar que frequentam ou habitam, os eximiriam dos desequilíbrios provocados na sociedade.
Mann faz paralelo entre os anos 30 e Wall Street atual
Existe, portanto, um figurino, uma linha a seguir, ainda que pairem sobre suas cabeças a certeza da fugacidade de suas vidas. Eles estão sempre tramando novos golpes, sob o risco de algum policial diligente encerrar suas carreiras ou um cúmplice mais esperto do que ele abrir uma rivalidade vital para ambos. Mann, fazendo um paralelo entre as falcatruas financeiras ocorridas em Wall Street e as manobras criminosas de John Dillinger (Johnny Depp), em “Inimigos Públicos”, mostra que a fantasia não está tão longe da realidade. Ambas forjam o criminoso à semelhança do momento histórico em que ele vive. A fantasia existe a partir do momento em que John Dillinger, assaltante de banco hollywoodiano, cercado pelos maiores parceiros ou concorrentes dos anos 30 – Alvin Karpis, Bebê Face Nelson, Pretty Boy Floyd – confunde a busca da respeitabilidade com a certeza da impunidade. Procura sempre estar em ambientes sofisticados para ser visto, cumprimentado, elogiado.
Não diferente do ex-financista Bernard Maddoff, que ao ser preso em 2008 culpou as leis estadunidenses de serem rigorosas demais. Elas o teriam impedido de ampliar sua fraudulenta pirâmide especulativa para além dos U$ 65 bilhões amealhados de seus investidores. Em seu caso há uma inversão – a impunidade lhe granjeou respeitabilidade, dignificou-lhe como grande investidor. Quando ruiu o castelo de Wall Street suas artimanhas financeiras no mercado especulativo se desmontaram. Ele se viu cercado pelos aplicadores, que exigiam o resgate do que tinham investido e o dinheiro inexistia. A glória de Maddoff então se transformou em crime financeiro – a realidade, na verdade, era uma fantasia. Mann não o compara a Dillinger, porém implícita as semelhanças entre ambos pela capacidade de articular grandes golpes para alcançar seus objetivos.
“Dillinger seria hoje magnata financeiro”
Numa aparente contradição, o cineasta chega a ver em Dillinger vestígios de estrategista financeiro, como nesta entrevista ao jornalista Eduardo Graça, do jornal “Valor”: “Maddoff não é uma reencarnação de John Dillinger. Ele não tem a audácia ou a estampa do gângster. Mas, se Dillinger vivesse em nossos tempos, ele provavelmente seria uma banqueiro. Não seria um assassino, seria um CEO de alguma grande corporação, um magnata de um banco de investimentos, com grande conhecimento dos mecanismos por detrás dos fundos de hedge. Ele teria esquemas do arco da velha. E a grande diferença entre ele e os figurões de hoje é que Dillinger jamais seria pego”, analisa Mann (1) Percebe-se isto pelo séquito que o acompanha, os homens de confiança, a forma como conduz as reuniões em que tramam os assaltos. Ele nunca fala mais que o necessário. Centra-se mais nos valores, nos lugares e nas rotas de fuga. Mas é, sobretudo, um perdulário, alguém que usa o dinheiro obtido para desfrutar a vida.
Uma demonstração disso é o jogo de sedução que ele desenvolve com a franco-americana Billie Frechette (Marion Cotillard) para conquistá-la. Enche-a de promessas, fantasias sobre a vida em ambientes paradisíacos, leva-a a restaurantes cinco estrelas – com orquestra embalada por Billie Holliday, mesas e cadeiras de luxo, painéis de alta pintura e clientela de primeiro naipe. Nestes lugares encontra gente de seu meio que elogia seu estilo, a forma como age ao entrar e sair de um banco, a fleuma demonstrada nestes momentos. Sabe, portanto, do fascínio exercido sobre os outros, principalmente a massa que acompanhava seus assaltos pela mídia da época. “(…) no livro que inspirou o filme o jornalista Bryant Burrough revela que pesquisas da época mostram que o público aplaudia mais Dillinger que o presidente Roosevelt ou Charles Lindbergh”, observa Mann na mesma entrevista (2).
Leitura ousada do crime nos anos 30
Tudo isso impressiona a moça de família humilde, que ganha a vida em clubes noturnos de segunda categoria. Ela, embora saiba do risco que corre, se deixa seduzir, sendo mantida por ele longe de suas atividades. Dillinger, ainda que cercado, encontra tempo e lugares secretos para se encontrarem – e ele repete as mesmas promessas, como se para eles houvesse uma chance para além do espaço em que circulam. De novo o desconforto retorna, apontando impossibilidades e, claro, Mann o reforça. Frechette não é “mulher fatal”, entregue à tarefa de destruir o “amado”, como nos policiais noir, ela receia que ele caia em suas próprias armadilhas. Carente, desacreditada, vivendo num mundo em que há pouco ou nenhum espaço para a fantasia, ela se apega a ele. Desvenda-se para ele, conta-lhe sobre suas origens humildes, indígena/européia, as constantes mudanças de cidade e estado, a necessidade de não ser uma carga para ele, Dillinger. Uma personagem, enfim, destoada de um meio que não lhe oferece recompensa alguma, que não delata o amado nem quando é torturada pelos brucutus da polícia federal dos EUA, o FBI, do fascista J.Edgar Hoover (Billy Cudrup), seu chefe por cerca de 50 anos.
Esta leitura ousada sobre o mundo do crime, pelas vias indiretas, faz de “Inimigos Públicos”, baseado no livro do jornalista Bryant Burrough, um filme para se ver com cuidado. Mann funde estilos, bebe em outras fontes, lança mão de sutilezas, sem trair seu olhar de cineasta interessado em divertir e atrair o espectador para o mal estar causado pelo personagem. Principalmente porque Dillinger é visto com a estampa de Johnny Depp, com seus traços indígenas, magro, moreno, cabelos divididos ao meio. Está ali para fundir as duas visões que ele, Mann, quer passar ao espectador: o da fantasia e o da realidade. A primeira por Depp ter uma persona holliwoodiana, vende glamour, passa a imagem de poder, de superioridade – “Eles não são tão inteligentes para me pegar”, diz numa emblemática sequência, referindo-se aos agentes do FBI – e a segunda por ele ser capaz de dar a sensação de que tudo aquilo pode ser ilusório. Outro ator, senão Depp, não teria o mesmo magnetismo. Ainda assim, Mann evita que ele seja simpático. O espectador não se identifica nem torce por ele. Justamente porque Depp se permite manter certo distanciamento.
Solidão do assaltante o põe em lugar nenhum
Dillinger é perverso. Inclemente. Não hesita em executar quem lhe barra o caminho. Guarda nalgum canto de sua mente um ódio mortal pela ordem estabelecida. Está sempre a desafiar o status quo, a polícia, a sociedade que lhe deu poucas chances de ascensão, procurando os lugares que não pôde frequentar. Órfão de mãe aos três anos, foi “educado” pelo pai à base de porretadas. Passou tempo em casas correcionais, penitenciárias, cubículos onde se escondia. Tinha forte atração pelo perigo, desafiar a lei era seu esporte favorito. Numa tentativa de seduzir Billie Frechette, ele se define como alguém que gosta de “baseball, cinema, boas roupas, carros velozes e uísque”, tudo que um magnata, correndo em outro páreo, curte sem os mesmos riscos. Com a diferença de que ele, Dillinger, vê a claridade como ameaça. Seus encontros com ela são furtivos, vigiados, muitas vezes não consumados. Então, Mann entra em outra seara: a da solidão do bandido, do criminoso em conflito com o sol, os grandes espaços, a visibilidade demasiada.
Este é um tema recorrente ao cinema de Mann. Seus criminosos vivem às vezes em amplos apartamentos que os aprisionam. Eles não conseguem desfrutá-los. Em “Fogo contra Fogo”, Neil (Robert DeNiro) faz o assaltante de banco acostumado a grandes golpes, que após a ação se refugia em seu canto para relaxar e esperar cessar a caça que lhe faz a polícia. Não confia em ninguém, parceiro algum o visita, ele não pode desfrutar o saldo que lhe coube do assalto. Tem de se apegar à sobrevivência, à cumplicidade do espaço onde está escondido. Está detido, não pela Justiça, mas por sua atividade criminosa, que não lhe deixa lugar para a diversão, o contato com as pessoas, o desfrute livre do dinheiro acumulado. Os cômodos do apartamento de luxo de um dos cérebros do maior assalto de banco já realizado no Brasil, preso há cerca de três meses, traduz bem esta sensação. Eles estavam praticamente vazios, os móveis eram poucos, o espaço demasiado – como se mantivesse preparado permanente para a fuga. Como atesta Mann em “Fogo contra Fogo” a ação deles pode vista como uma compulsão pelo proibido, algo que gera prazer e, depois, a reclusão, senão a depressão.
A câmera de Mann fechada no rosto de Dillinger, nos cantos dos cômodos por ele “habitados”, mantida à altura da cama, em sequências pouco iluminadas, refletem a mesma solidão. A melancolia predomina, há certa derrisão, algo movediço, com cheiro pútrido. Lembra Gong Le em “Miami Vice” – ela está sempre partindo, evadindo-se. Quando Mann afasta a câmera, ela mostra Dillinger em amplos espaços, acentuando o mal estar, a inquietação contida, a certeza de que não pertence àquele lugar. Mesmo entre a multidão, ele não a integra – é um ser que dela pode ser abstraído. Salvo quando ele, temerário, ousado, penetra em espaço perigoso demais para alguém conhecido pela massa. Ele passeia por salas, vê suas fotos na parede, recortes de jornais sobre ele, absorve informações, desafiando o que elas lhe comunicam. Dillinger é talvez o primeiro criminoso midiático, quem a usa para satisfazer sua sede de ser visto. Daí, de novo, a fantasia confundindo-se com a realidade. Faz um jogo conhecido do espectador de hoje, se expõe e se esconde detrás de grandes e coloridos óculos. Dá para entender seu exibicionismo, a vontade de ser aceito em bons termos pela sociedade – sua origem, as escalas sociais por demais rigorosas, a violência paterna e a ausência da mãe o impediram de ter as retribuições necessárias a cada etapa de sua existência.
Dillinger gostava de ambientes luxuosos
A maneira como se expõe o confirmam. O gosto pelo perigo, não apenas a alta velocidade, de estar ao lado da polícia e esta não o ver. Gosta de posar para fotos, de encenar, de estar no jóquei, apostando em cavalos. São paralelos construídos por Mann enquanto os agentes do FBI giram em torno dele, Dillinger. São mostrados como brucutus, gente de pouco tato, desses que arrancam confissões à base da violência, torturando suas presas. Billie Frechette sofre na mão de um deles. Mann os trata como sombras, vultos que se movem entre escombros. Menos o Agente Purvis (Christian Bale), chefão deles, que demora para perceber o tipo de criminoso enfrentado. Então passa a usar o cérebro com uma engenhosidade e ferocidade canina. Não é, no entanto, um personagem à altura de Dillinger. Bale é um ator de pouco carisma, de presença não magnética, não transmite autoridade. Seu personagem é um contraponto aos brucutus, espécie de Elliot Ness, vivido por Kevin Costner, em “Os Intocáveis”. Quando começa a trabalhar mais as escutas, as manobras com emigrantes envolvidos no crime, ele se moderniza. É mais sutil, interessado em ter os dados, os locais, as posições e movimentos de Dillinger para agir. Não serão, porém, seus novos métodos que o levarão ao êxito. É o comportamento temerário, midiático, de Dillinger que facilitará seu trabalho.
“Inimigos Públicos” torna-se, desta maneira, um estudo sobre os criminosos midiáticos, cujas ações têm de vistas em toda sua extensão. Não basta ver o filme apenas. Dillinger acaba virando um fenômeno pop. Não apenas por seu comportamento. Ele era notícia, se fazia notícia, exigia ser notícia. Dillinger não se importava em ser visto, fotografado, comentado, elogiado, tinha estampa para isto. Seus atuais reflexos preferem o fakes, falso, rostos mudados em clínicas de cirurgia plástica, identidades fictícias, endereços bem localizados. Enquanto Dillinger insistia em traçar seus futuros esconderijos, dentre eles, a Cuba de Fulgêncio Batista e o Brasil de Getúlio Vargas, os novos gangsters deslocam-se em jatinhos por fronteiras movediças, transitam livres devido às propinas distribuídas e o séqüito de assessores das mais diversas áreas (e não é preciso dizer quais). De qualquer forma, o Dillinger dos anos 30, época em que lei e ordem supostamente não se confundiam, pode ser visto hoje como um romântico. O capitalismo atual exige dos gangsters mais que adrenalina, caso contrário, seus concorrentes os engolirão sem ao menos um confronto mortal.
Assim, o choque dado por Mann no espectador, em sutis paralelos, lhe permite transitar de uma época à outra, sem tergiversar. Ele usa momentos históricos diferentes para enquadrar situações e personagens não tão fictícios assim. Satisfaz inclusive a quem é mais afeito ao espetáculo, em seguidas encenações de tiroteios – um deles dura cerca de 15 minutos. Releitura de sequência de “Fogo contra Fogo”, quando Neil e seus comparsas e agentes de segurança trocam tiros em plena praça. Os disparos vêm de múltiplos lados, às vezes são apenas jatos de fogo, nada se vê senão eles. Eles são articulados em cenas e cortes rápidos, semelhantes aos jogos de computador, de tal forma que os contendores se confundem. Causam impactos pela violência dos disparos, pela eficiência da montagem, menos pela explicitação de suas consequências – os danos causados pelas balas. Bandidos e policiais contam os mortos – as vítimas são de ambos os lados. A verdade nem sempre pode ser dita apenas com o realismo – a fantasia também pode ser real.
“Inimigos Públicos”. (“Public Enemies”).Policial. EUA. 2009. Duração: 140 minutos. Roteiro: Roman Brenner, baseado no romance de Bryant Burrough. Direção: Michael Mann. Elenco: Johnny Depp, Christian Bale, Marion Cotillard, Billy Cudrup.
Nota
(1) O Grande Gângster, Eduardo Graça, Valor, página22, sexta-feira e fim de semana, 24,25 e 26 de julho de 2009;
(2) Idem, idem, texto cit.