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A classe operária vai ao cinema

Depois de anos de abandono, mercado de cinema volta a mirar a classe C com salas em supermercado e nova estratégia. Hoje, famílias com renda entre R$ 726 e R$ 1.195, habituadas a consumir DVDs piratas e ver televisão, só vão ao cinema estimuladas por promoções e sucessos.

Os fabricantes de sabonete fazem. As companhias aéreas fazem. Mas os cinemas perderam o compasso. "Para o cinema, o boom de consumo da classe C não chegou. Não estávamos preparados para receber esse novo consumidor, não fizemos nada por ele," constata Adhemar Oliveira, sócio da rede Unibanco Arteplex.

A classe C, que inclui famílias com renda entre R$ 726 e R$ 1.195, cresceu 21% entre 2003 e 2008 (Datafolha). Se, em 2004, 17% dessa população tinha acesso à internet, em 2008 o índice, segundo o Ibope, saltou para 34%. E, ao bater de porta em porta, o IBGE constatou que, pós-geladeiras, outros objetos de desejo surgiram. Números levantados pelo instituto indicam ser de até R$ 14 bilhões o potencial de consumo da classe C para lazer e cultura.

Mas, enquanto a banda Calypso fisgava esses novos consumidores, o cinema os deixava do lado de fora. "Com o fim das salas de rua e a chegada dos multiplex [em 1997], o cinema se tornou um programa para as classes A e B", diz Oliveira. Nascia assim o enorme contingente dos sem-tela que, se não tem líder, tem a pirataria e a TV como aliados. "Quando temos um filme como "Se Eu Fosse Você 2", vemos que o circuito está falido." Oliveira aposta que, se houvesse salas populares, o filme teria vendido o dobro de ingressos.

Pois foi de olho nesse público que o empresário decidiu construir dois complexos no Carrefour Sulacap, na periferia do Rio, e no Carrefour Limão, em São Paulo. A primeira diferença é que, em vez de estarem abrigadas em shoppings, as salas ficarão num supermercado. O frequentador não pagará estacionamento e, mágica, os ingressos e a pipoca custarão cerca de 30% menos. "Da construção à bombonière, todo conceito é diferente. Claro que o frequentador tem de se sentir bem, mas é possível reduzir alguns custos", diz o empresário. A principal diferença está no contrato de locação, assinado em parâmetros distintos daqueles dos shoppings.

O governo, do seu lado, também tenta empurrar esse movimento. "Estamos trabalhando com a Ancine [Agência Nacional de Cinema] para que haja um apoio específico para salas populares", confirma Luciane Gorgulho, do BNDES. Ao falar sobre o assunto, num seminário, o presidente da Ancine, Manoel Rangel, cutucou: "Resta saber que agentes privados terão a ousadia de investir".

Resta saber também se o público perdido voltará às salas. Flavio Panzenhagen, dono do cinquentenário Cine Cisne, em Santo Ângelo (RS), acha que não. "Atingir a classe C não é tão simples", diz ele, que cobra de R$ 5 a R$ 7 pelos ingressos. "As pessoas preferem ver TV ou comprar o pirata na esquina e levar para casa."

Brasil é dos países com menos salas no mundo

Numa das cenas do filme uruguaio "Gigante", em cartaz em São Paulo, o vigilante de um supermercado acompanha os passos de sua amada, faxineira no mesmo emprego, e, ao segui-la, vai parar num pequeno cinema de bairro. Na produção brasileira atual, tal sequência soaria inverossímil.

É que o cinema no Brasil, ao ressuscitar após o fim da Embrafilme (1990), tomou forma elitista. No circuito e na produção. Havia, em meados da década de 1990, três vezes menos salas do que na década de 1970. Os cinemas que cerraram as portas foram, sobretudo, os de periferias e pequenas cidades. Numa lógica "ovo-e-galinha", também os filmes, salvo exceções, como Xuxa e "O Auto da Compadecida", deixaram de ter esse público como alvo.

O alarme tocaria em 2003. Para surpresa dos donos dos confortáveis multiplex, a sala que mais vendeu ingressos para "Carandiru" foi o Cine Ipiranga, no centro de São Paulo, habitualmente às moscas. Nesse mesmo ano, "Maria, Mãe do Filho de Deus" registraria um feito raro: teve maior renda durante a semana, quando os ingressos são mais baratos, do que nos finais de semana.

"Faltam cinemas para a classe C e também em cidades pequenas", diz Walkiria Barbosa, da Total Filmes, produtora de "Sexo Amor e Traição" e "Se Eu Fosse Você". Ela tira um exemplo da manga. "Se Eu Fosse Você" fez, em Macaé (RJ), 1,5 mil espectadores. Três anos mais tarde, após a abertura de um novo complexo na cidade, "Se Eu Fosse Você 2" vendeu mais de 10 mil ingressos. "Há uma demanda reprimida. Mas, para tirar o público da inércia, o filme tem que ser um evento."

Eduardo Vaz, dono de um circuito de 60 salas, quase todas em bairros periféricos das capitais, como Bangu, no Rio, nota que o público anseia por promoções. Não à toa, ele criou a "Terça Mais", a R$ 5, e a "Quinta do Beijo", que deixa o casal entrar com um só ingresso -desde que se beije. "Nosso cliente não tem a cultura de ir ao cinema. Para atraí-lo, temos que criar programas de acesso e ter filmes de sucesso. Não adianta oferecer um produto de segunda linha. A classe C também quer ver 3D."

Aí é que se (re)fazem os nós. Os cinemas mais afastados têm dificuldades até mesmo para conseguir cópias dos lançamentos. "Cheguei a receber filme um mês depois de ter estreado em São Paulo", diz Flavio Panzenhagen, do interior do RS. Para resolver esse problema, o projeto do governo, pelo que a Folha apurou, inclui a instalação de uma fábrica de projetores digitais na Zona Franca de Manaus. O custo do equipamento cairia de R$ 250 para R$ 150 mil e, com a digitalização do circuito, as cópias deixariam de ser empecilho.

Outra barreira, que o projeto do Carrefour pretende quebrar, é a do ambiente. "Parte do público ficou com medo de entrar no cinema. É preciso abrir salas onde essas pessoas já vão", diz Oliveira. "Na pesquisa que fizemos, todos mostraram desejo de ter um cinema perto de casa", completa Thierry Perrone, sócio da empreitada.

A quem imagina que a tendência à diminuição de salas é mundial, vale uma comparação. Nos EUA, há uma sala para cada 7,5 mil habitantes; na França, o índice é de 11 mil e, na vizinha Argentina, de 40 mil. O Brasil, com uma sala para cada 92 mil pessoas, tem uma das piores médias do mundo. "Sem a abertura de mais salas, o cinema, no Brasil, vai ficar onde está", finaliza Perrone.

Fonte: Folha de S.Paulo