O Vale Cultura: divisor de águas na política cultural do Brasil

“Se me fosse possível escolher as canções e melodias de um povo, eu não me preocuparia tanto com seus legisladores” – Platão

A relação entre o objeto cultural e o corpo político-social existe desde Platão, que defendia a escrita como meio de disseminação autônoma do conhecimento, da cultura e do exercício da cidadania. Platão argumentava com a elite da época, representada nos poetas homéricos que favoreciam a “transferência falada” do conhecimento, que a escrita era um instrumento capaz de produzir a democratização do conhecimento e a ampliação da cultura.

A propósito, foi também por essa razão que mais tarde, no começo do século 14, Dante Alighieri escolheu usar a linguagem popular quando escreveu a Divina Comédia, rejeitando o pensamento reacionário da época.

Muitas gerações passaram desde Platão e as culturas do planeta se ampliaram por todos os cantos, constituindo novos centros de conhecimento e de cultura a partir da escrita e outras formas de historiar, renovando as instituições mantenedoras de legado histórico que acabaram por moldar a dinâmica de todo um processo de estruturação social moderna, passando pela ocidentalização do mundo a partir do mercantilismo europeu; passando pela Reforma e por várias revoluções políticas e econômicas nos dois hemisférios.

O resultado disso é que hoje, no século 21, a gente tem um mosaico de culturas na Terra que, de tão diverso, chega a ser uma galáxia dentro de um planeta – um planeta com quase sete bilhões de pessoas querendo participar dos processos sociais.

A diversidade cultural tem historicamente alimentado as tendências democráticas dos países e, mais recentemente, essa diversidade estabeleceu uma forte reciprocidade com as novas ferramentas de comunicação que operam em rede, hoje adotadas por quase dois bilhões de pessoas no mundo.

É nesse contexto que a diversidade inerente ao povo e à cultura brasileira apresenta uma oportunidade singular de avanço, já que os instrumentos atuais de consumo e produção cultural convergem com os meios de comunicação e as redes distributivas em uma frente única, com o poder de subsidiar a reconfiguração social e política em grande escala. A tese é que um novo sistema de valores regendo a sociedade se torna possível a partir dos novos métodos de produção cultural.

Isso acontece, principalmente, porque o novo cenário sustenta uma enorme economia imaterial, de baixo impacto socioambiental, ao mesmo tempo em que convida o povo a cumprir seu papel na evolução da sociedade. Além disso, é fato verificável que as atividades culturais denotam a tecnologia social mais avançada da atualidade: as Artes falam diretamente à questão do compartilhamento, da colaboração e da diluição de conflitos porque carregam esses atributos em seu DNA.

O Projeto de Lei do Vale Cultura é um exemplo muito animador dessa nova forma de pensar a Cultura e, na minha visão, representa um divisor de águas na política cultural do país.

Em primeiro lugar, essa iniciativa representa um salto qualitativo; representa um novo conceito de investimento cultural, resgatando os valores de Platão ao buscar o empoderamento do cidadão. O grande lance do Vale Cultura é que ele coloca o poder de decisão nas mãos do cidadão trabalhador: é ele ou ela que escolhe onde vai ver uma peça de teatro ou assistir um filme; que escolhe qual livro ou qual CD deve ser comprado.

Esse novo poder de compra nas mãos do trabalhador possibilita a edificação de novas audiências bem na comunidade onde ele habita, a partir de espaços culturais que se mostram aptos a acomodar as escolhas culturais do cidadão trabalhador perto de casa, onde o fator de proximidade ao produto cultural é determinante. Então, essa novidade inverte a lógica vigente e democratiza as tendências culturais da sociedade no momento em que viabiliza o funcionamento de todo um aparelho cultural próximo ao trabalhador, visando atender um novo mercado cultural bilionário que abarca milhões de pessoas.

A gente estima que 12 milhões de brasileiros deverão se beneficiar do Vale Cultura, e também que o consumo cultural no país deve aumentar em mais de 7 bilhões de reais por ano. Isso fortalece desde as cadeias produtivas da economia da cultura, até a diversidade cultural brasileira, a profissionalização, o aprimoramento técnico, a geração de renda, o trabalho e o emprego.

Quando nós descentralizamos o consumo e a produção da cultura, social e geograficamente, nós estamos eliminando camadas intermediárias da cadeia cultural e trazendo a experiência cultural para mais perto do quotidiano vivido pelo povo; para mais perto de casa e dos filhos, e mais longe da hegemonia que favorece a comoditização da cultura porque tende a se limitar à imitação estrangeira, aos rótulos publicitários e ao lucro.

Em síntese, a descentralização da cultura cria incentivos à cultura que vive do valor agregado e não do preço do ingresso. Essa é a cultura viva que a gente precisa para dar sentido, ritmo e sustentação ao desenvolvimento do país.

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