Poesia: um “cão que morde por dentro”
Livros de Eduardo Sterzi e Carlito Azevedo mostram a força da atual poesia brasileira
Publicado 14/02/2010 20:58
Quando se lançam novos livros de poesia, é quase inevitável questionarmos o alcance em termos de público e as novas possibilidades expressivas do gênero. São sintomas do impasse que todo novo poema enfrenta: estaria a poesia condenada ao esgotamento? À lírica, na modernidade, foi legado o destino de sempre se reinventar, autoquestionando-se, sob pena de esvair-se em outra coisa tíbia, que não ela mesma. É, ao mesmo tempo, um estímulo e uma prisão. Também por isso, o que buscamos em um novo livro de poesia não é só novidade ou beleza. Buscamos algo que seja capaz de nos surpreender e pensar: “bem…isso não poderia ser dito de outra forma. Por este poema reencontro-me com algo da experiência humana que me estava sonegado até aqui.”
Levando em conta a imensidão dessa tarefa que o poema propõe ao poeta e também ao leitor, não será irresponsabilidade dizer que a notícia para a poesia nacional é muito boa. Tendo ficado alijada dos mecanismos esterelizantes do mercado editorial de maior extensão, graças à sua sina de “vender pouco”, a poesia brasileira encontra-se em um momento fértil, pois são inúmeros os bons poetas novos. É também impressionante a qualidade dos livros que vêm aparecendo nesta primeira década dos anos 2000. Exemplos admiráveis desse período são Aleijão, de Eduardo Sterzi, e Monodrama, de Carlito Azevedo (ambos publicados pela 7Letras em 2009), que fecham a primeira década poética do segundo milênio mostrando a maturidade do gênero no português brasileiro.
Alguns traços aproximam os dois volumes, o que só reforça a coerência do sistema literário atual em se tratando de poesia. Primeiro, chama a atenção o fato de ambos os livros terem uma extensão significativa e caracterizarem-se por uma profundidade inquietante. Não pense, pois, o leitor que estará diante de poemas fáceis de ler, em que a beleza se oferece tranquila. Beleza, se vier, virá de um trabalhoso esforço do leitor. Mas embora duro, o esforço compensa. Carlito e Sterzi equacionam de formas distintas, mas com igual radicalidade a lição do Drummond de Claro Enigma: “Eu quero pintar um soneto escuro/, seco, abafado, difícil de ler”. É essa tradição da lírica como obstáculo, como armazém de desafios, mistérios e incômodo que Aleijão e Monodrama nos apresentam, sob um prisma temático comum: a violência. Está aí a força desses versos – estão eles banhados com a violência que está irremediavelmente amarrada ao caminhar humano na atual etapa da nossa história. Não sonegá-la e desafiá-la já é um ato de coragem estética que Carlito e Sterzi transformam muito bem em forma lírica.
O cão e um anjo boxeador
O gaúcho Eduardo Sterzi, em Aleijão, trabalha com uma ampla gama de recursos formais, que faz com que seu verso se estenda em composições mais longas e também em poemas mínimos e de corte certeiro, como em: “Este cadáver é nosso/ almoço// qual será/ a sobremesa?”. O pacto com a violência como tema invade as resoluções formais de Sterzi e ganha força pela maneira original como o autor trabalha efeitos de distanciamento. Tais efeitos, pinçados na tradição moderna, tornam o leitor sempre um estrangeiro à situação expressa pelo poema, um hóspede indesejado daquele momento de revelação. No entanto, seu verso também nos atrai, e o livro, mesmo extenso, lê-se de um fôlego, como num mergulho em sonho ou pesadelo – que aliás é exposto pelo poeta em “Aquário”: “Mergulha no sono/ como quem/ num aquário/ de águas-/ vivas.” Na maioria dos poemas, Sterzi acerta a mão, combinando a dose certa de incômodo, violência, ritmos alucinantes e espírito irônico. Não haverá tom pejorativo quando um crítico disser que estes são versos de um cão, latidos e não escritos, pois é o próprio poeta quem fala do “desejo cão que late/ a noite inteira no pátio.” Fiquemos com esta imagem do cão, a desassossegar nossa humanidade. Fiquemos com ela e, ao lermos Aleijão, lembraremos de João Cabral, Augusto dos Anjos ou o Ferreira Gullar de “A luta corporal”, pois estes são também poetas de aleijões.
Monodrama, marca o retorno ao livro (após treze anos sem publicar) de um daqueles que certamente será lembrado como um dos poetas clássicos do entre-século. Por clássico entenda-se aquele que não será permitido esquecer quando a historiografia debruçar-se sobre o período. Profundo conhecedor de poesia e imerso lucidamente em seu tempo, o carioca Carlito Azevedo dá ao leitor um livro de poemas digno de ombrear com o Elefante de Chico Alvim, como um dos melhores da década. Trata-se de obra madura, organizada sobre um sentimento lírico denso e difícil – vemos ali, em cada linha, o ser humano diante da perda, e da surda violência da política. Não por acaso já se disse que este é o livro mais político de Carlito. Quem lê político, entretanto, não deverá ler panfletário ou partidário. Político aqui quer dizer algo sobre a consciência que a poesia é capaz de exibir: a da condição de coisa do indivíduo, esmagado pelas estruturas do sistema capitalista e da modernidade. Monodrama é um grito desencantado sobre a possibilidade de cantar algo humano nesta altura da história. Ao mesmo tempo, é utopia, pois o canto de Carlito se realiza, dando as mãos à prosa. Da prosa Carlito buscará, em Monodrama, primeiramente, a libertação das amarras do verso. São inúmeros os bons poemas em prosa do livro, tais como os que compõem a série “H.”, que é dedicada à experiência da convivência com doença e a morte da mãe. Da prosa Carlito busca também a densidade narrativa, que adere à densidade do sentimento da individualidade que fala no poema. Daí aparecerem nos poemas diálogos, pequenas cenas, personagens inquietos, incomodados, estrangeiramente oblíquos no mundo irregular que tentam entender ou pelo menos descrever. Surge então (como fora em Sterzi a do cão) uma outra imagem emblemática: a do “anjo boxeador”. Um personagem no melhor estilo gauche, tal como aparece em “Café”: “O anjo boxeador senta-se no café do aeroporto e é como se caísse numa cratera do tempo.” Este é o personagem que comanda a nossa viagem ao avesso do sonho da globalização – a sua íntima verdade. Este anjo boxeador lírico nos leva a duvidar da nitidez das promessas do sistema: “Nitidez é um caso dessa luz/ seu perigo e/ seu desmoronar.” Nesse sentido é emblemático o poema “O anjo boxeador tenta descrever uma cena”. Nele esta voz torta, chama-nos à cumplicidade para comunicar a melancolia do impossível.
São, pois, dois livros que revigoram a poesia brasileira. Sim, ela vai bem, obrigado. Fez um pacto maduro com a negatividade, a considerar estes dois bons conjuntos de versos. Ela caminha o seu destino de “Nem procurar, nem achar: só perder”, como diz Carlito em Monodrama. E, sendo poesia, ainda é, sim, algo digno de temor, pois pode fazer o leitor encontrar-se consigo mesmo, face a face com seus mais terríveis pesadelos. Mas não estamos desavisados, pois Sterzi alerta em tom de epígrafe no Aleijão: “Cuidado ao cão/ que morde por dentro.”