"Praça Saens Peña": Crônica de amor e sonho na Tijuca

Diretor carioca, Vinícius Reis, faz emocionada crônica do bairro da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, através de personagens que refletem a convivência entre os moradores dos espigões e os dos aglomerados que o circundam.

 Com fotografia esmaecida que às vezes retira das figuras, dos espaços e das construções seus contornos para melhor realçar suas impressões, o diretor Vinícius Reis transforma seu filme “Praça Saens Peña” numa crônica do bairro carioca da Tijuca. Nele os personagens, embora confinados em seus espaços, buscam resgatar a memória de uma área geográfica que remete à própria influência francesa na cidade. E cujas mutações provocaram radicais intervenções no meio ambiente até chegar à ocupação de suas reservas. Culminando com as interinfluências atuais que geram a convivência entre a classe média dos espigões e os moradores dos aglomerados que, embora juntos no mesmo vale, mantém olhares distanciados um do outro. Mas é neles que o olhar de Reis se debruça para avançar as possibilidades de uma interrelação.

No entanto, o centro dessa crônica visual é a família modelo dos tempos atuais, formada pelo professor de ensino médio, Paulo (Chico Diaz), por sua companheira Tereza (Maria Padilha), gerente de lanchonete, e pela filha do casal Bel (Isabella Meirelles) as vésperas de cursar a universidade. Modelo, pois encerra no mesmo espaço as ambições da classe média, de reduzida prole, por casa própria, poupança e visibilidade. E reflete o padrão familiar de uma época em que a situação econômica, populacional, política e comportamental está condicionada pelo meio ambiente. Tudo deve permanecer dentro do possível, sem ultrapassar os limites estabelecidos, como repete mais de uma vez Tereza, submetendo companheiro e filha a seu controle.

Crônica do bairro e da classe média

Sua aspiração maior, em meio a esses impasses, é conseguir equilibrar o orçamento da família e, quem sabe, um dia fugir do aluguel. Sonhos comuns à maioria das donas de casa classe média em idêntica situação. Enquanto este dia não chega, mantém uma relação saudável com Paulo e Bel. Até que um e-mail inusitado rompe este equilíbrio supostamente estável, introduzindo um elemento que tanto pode reforçá-lo como mostrar suas fraturas. E permite a Reis tecer sua crônica do bairro e da família a um só tempo. As aspirações de Tereza ganham nítidos contornos quando ela agarra-se à oportunidade de Paulo escrever a história da Tijuca e, no limite, iniciar uma carreira de escritor que tenha retorno econômico e lhe permita concretizar seus sonhos.

É ela, Tereza, que puxa os fios de sua relação com Paulo, que lança a filha num turbilhão para o qual não está preparada, que a leva a experiência furtiva antes inimaginável. Quando se dá pelo envolvimento está por demais ferida para não se desmanchar diante do companheiro. O que a impele está fora de seu controle, de sua consciência, para ela o refutar. Continua restrita ao seu pequeno mundo para enxergar para além de si. A ponto de numa conversa exploratória com João (Gustavo Falcão) mostrar o quanto não se relaciona com o meio em que vive. Não consegue identificar os aglomerados que cercam a Tijuca, símbolos da ineficiência, desigualdade sócio-econômica e descaso da burguesia nacional; prefere lançar sua ira contra o governo Lula, culpando-o por não ter moradia própria.

Ao contrário de Paulo, que apóia as políticas do governo atual, engajando-se na vida do bairro, buscando transformações, ela reflete assim as tendências de segmentos conservadores da classe média. A preocupa mais a segurança em si, os belos cômodos e a vista para a floresta do apartamento que aspira comprar, do que as pessoas e os espaços onde vive e circula. O medo e o condicionamento social a oprimem e impedem que reflita sobre os descaminhos em que se meteu, motivados pela total entrega de Paulo ao projeto do livro sobre a Tijuca. E, por sua vez, à necessidade de elevação econômica para atender às suas carências.

Paulo relaciona-se mais com o bairro

Diferente de Paulo, acostumado ao convívio com alunos e ruas, tem um olhar diferenciado sobre o bairro. E o passa aos leitores de seu blog, inclusive ao ex-colega de classe e agora editor Plínio (Maurício Gonçalves), que o convida para escrever o livro sobre o bairro. Através dele o espectador percorre a história, as mudanças na geografia, na natureza e nos espaços à sua volta. O filme, assim, assume sua narrativa de crônica, de conhecer gente, lugar, fato, de como o morador toca seu dia-a-dia e extravasa sua dor. Tocante a sequência em que Paulo ouve a conversa de Macedo (Gutti Fraga) com o vendedor de cachorro quente. A princípio distante, ele vê na tragédia exposta pelo outro a oportunidade de introduzir em seu livro o dilema do morador no aglomerado do Borel. E desnuda desta forma a relação distanciada, desconfiada e preconceituosa da classe média dos espigões com os chamados, por eles, “favelados”.

Paulo, boa praça, despachado, encontra em Macedo o personagem que o permitirá unir os diferentes extratos sociais que vivem no mesmo espaço para dar forma ao perfil que traça do bairro. Da frieza inicial, eles evoluem para uma amizade real, cheia de nuances e modos de tratar problemas amorosos. Macedo, radical, tem suas quedas, perdas, explosões, mas é solidário, participante. Está acostumado a identificar os sinais, sons e movimentos no aglomerado. Hilariante e ainda assim tensa a sequência em que ele e Paulo conversam na laje de sua casa no Borel e tiros de metralhadora crepitam nas proximidades deles. Ele continua a conversa e vai explicando a Paulo o que na verdade está acontecendo. Dois universos distintos que em instantes partilhados reagem de forma adversa ao mesmo evento dada à formação e vivência diferenciada.

Editor quer mais o resultado de venda

Com estes fios, Reis avança sua crônica do real, daquilo que a classe média já se acostumou ou pelo mesmo tenta, diante da ausência de alternativa, levar adiante. Ainda que Plínio, mais interessado nas chances mercadológicas do livro sobre a Tijuca, queira que ele, Paulo, deixe esta vertente de lado. Prefere que sua obra seja um guia, um roteiro, para quem se interessa em percorrer ruas, praças e recantos do bairro, conhecido por sua zona boêmia, seus cantores e compositores. Paulo, pelo contrário, se interessa mais pelo aspecto humano, as contradições sociais e as possibilidades de relacionamento entre os moradores dos espigões e os dos aglomerados. Um viés mais condizente com sua experiência de professor e de morador obrigado a sobreviver em meio ao perigo constante.

O filme ganha outros contornos quando Paulo percorre a história da Tijuca, com seus colonizadores franceses, com a ocupação do vale, com a viagem pela ocupação urbana na conversa dele com Macedo no alto do Borel, as lembranças dos compositores e cantores que fizeram a MPB, de Noel Rosa a Tom Jobim, de Tim Maia a Aldir Blanc. Este emerge com sua figura característica, bonachona, amigável, tecendo história e conversa de bar, diante de um professor de ensino médio embasbacado com sua camaradagem. Mistura de ficção e realidade, de personagem e ser real ficcionado, que não deixa o filme perder o tom de crônica. Com a grande virtude de Reis em não tornar seu “Praça Saens Peña” um passeio turístico pelo bairro.

Entre uma pincelada e outra, Reis debruça-se sobre o centro de sua crônica: o que o elemento inusitado – a possibilidade de crescimento econômico – mudou na vida da família Paulo, Tereza, Bel. Ela antes equilibrada desce aos porões, entra num clima de desmanche, pois um de seus esteios, Paulo, entrega-se à pesquisa e escritura de seu livro e se isola. Ele, pressionado pelo prazo e o editor Plínio, não tem tempo para a companheira e a filha. Cada uma delas tem suas carências, suas necessidades que ele deve satisfazer e até ele se entrega a uma busca que precisa da cumplicidade delas para atingir seu objetivo. Chega a um ponto que elas não o entendem e nem ele a elas. O núcleo equilibrado quase se esfacela. E como se trata de uma crônica, iniciada com as observações de Paulo como narrador, alcança seu auge com o fechamento dos capítulos marcados pelo tempo.

Bel evidencia seu ponto de equilíbrio

O narrador muda e assume outro caráter: o de por os fios em seu tecido comum. Reis o faz através dela, Bel, que passa por transformações, um rito de passagem pontilhado pela praia, descobertas amorosas, elevação de participação social. Sua relação com o mar, evasão, sensibilidade para sentir as mudanças no comportamento da mãe e, sobretudo, a percepção de que ela, Tereza, depende dela e do pai para se equilibrar. No desfecho em que assume a condução da narrativa, ela o evidencia. O espectador a percebe então de outra forma, menos ranzinza, carente, disposta a aceitar o jogo para o qual nenhum deles estava preparado.
Neste ponto ao permitir os personagens ditar sua visão, o filme se reforça. Fica centrado neles, deles depende, inexiste passeio pela paisagem urbana, só eles. Os atores, sem distinção, contribuem para a leveza e a emoção que dele emana. Pois crônica visual, cinematográfica, é assim: interessa mais o que os personagens passam para o espectador e sua relação com o meio, que enfiá-los numa narrativa de causa e efeito. Às vezes, eles, os personagens, têm seus solos, noutras dialogam uns com os outros. Foi assim em “Chuva de Verão” e “Bar Esperança” – um tratando da velhice, o outro da boêmia. Não é diferente nesse “Praça Saens Pena”. Um filme para se ver e imaginar as mutações em seu próprio espaço de (con) vivência.

“Praça Saens Peña”. Crônica. Brasil. 2008. 107 minutos. Roteiro/Direção: Vinícius Reis. Elenco: Maria Padilha, Chico Diaz, Gustavo Falcão, Isabella Meirelles, Aldir Blanc, Maurício Gonçalves.

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