"Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo": Vidas Áridas

Dupla de cineastas nacionais, Karin Ainouz/Sérgio Machado, transforma filme em viagem ao sertão cearense em flagrante da vida dos marginalizados

…na verdade o filme de estrada, o roadmovie, é uma vertente da contracultura que sobrevivi sem ter o mesmo impacto. Perdeu o clima de contestação do sistema, a tentativa de mudar a sociedade e o sonho de criar novas estruturas político-ideológicas. O frescor então se foi, restando apenas a fórmula destituída de sentido que poderia levar os deserdados a repensar suas vidas. Diante disto, a elaboração visual da dupla Sérgio Machado/Karin Ainouz, “Viajo Porque Preciso,Volto Porque Te Amo”, gera desconforto, devido ao inquieto olhar lançado sobre a realidade brasileira.

       Mas não se enquadra no roadmovie como tal, por fugir às citadas características. Inexiste uma contestação em si, mas comentários sociais e mergulhos em conflitos amorosos. Assim, torna-se um filme de estrada por contingência. Uma opção da dupla de diretores/roteiristas, sustentada pela câmera subjetiva que registra a epopéia do geólogo Zé Renato (Irandhir Santos), pelo sertão cearense.

         Em off, ele vai dialogando consigo mesmo, num fluxo de memória que o liga à amada para  situar-se e ao espectador, enquanto demarca áreas onde, no futuro, correrão as águas transpostas do fictício rio das Almas. Às vezes, o diálogo interior, joyceano, substitui o fluxo de memória, com o personagem se impondo aos sitiantes, na primeira parte do filme, pois estes tão só o observam, não dialogando com ele, Zé Renato. Duplicidade de linguagem pouco comum no cinema atual, pouco dado à complexidade e elevação do nível narrativo, que tiraria o espectador da passividade.

            Mesmo a câmera subjetiva, em constante movimento, não se detendo na terra arenosa e tampouco nas pessoas, ele, o espectador, sente a desolação, as impossibilidades sociais. Impressão que o remete à aridez da primeira parte de “Os Sertões”, quando Euclides da Cunha tipifica geológica e topograficamente a região, situando o leitor, antes de entrar em Canudos. O que ajuda o espectador entender melhor os conflitos do personagem com a amada, as dificuldades que o terreno apresenta para as obras de transposição e o vazio existencial que Zé Renato terá pela frente.

               Viagem imagética
               sertão adentro

            Então, a viagem imagética, euclidiana, sertão adentro, se impõe, trazendo consigo arquétipos cinemanovistas: sitiantes e romeiros, com uma e outra mudança. Principalmente as estradas, os postos de gasolina e um infindável grupo de deserdados de beira de estrada, mostrando os percalços da urbanização desordenada. A brutal realidade do agreste retorna através dos garotos/as que ganham a vida tampando buracos da rodovia, preenchendo o espaço deixado pelo Estado. Não são mais retirantes, seguindo os pais, são agora sobreviventes de estruturas político-econômicas capitalistas que não atendem às suas carências.

             Iguais a eles, outros irão surgir: o sapateiro, o fabricante de colchão, as garotas que ganham a vida entregando-se aos viajantes por uma noite. Ambos povoam a viagem do “personagem solitário”, que não reflete sobre os novos deserdados. Ele é apenas um técnico às voltas com a tarefa de mapear a região onde haverá a transposição, tomado pelas relações amorosas, que vão se transformando ao longo da narrativa em conflito familiar/amoroso e em fracasso.

             No entanto, a câmara subjetiva, que o faz identificar as deficiências geográficas, topográficas e os altos custos econômicos da transposição do rio, o leva a enxergar rostos e situações duras de existência. Numa de suas paradas, encontra Patrícia Simone da Silva, que o faz deixar a passividade de espectador da vida das pessoas comuns. Com simplicidade, ela define o tipo de vida que espera ter, chamando-a “vida lazer”, espécie de paraíso familiar em meio ao inóspito agreste.

             Patrícia ainda tem esperança, embora sobreviva fazendo o lazer sexual de “passantes” como ele, Zé Renato. Desta forma, ele deixa sua posição de geógrafo, que vê as coisas apenas por sua composição, não pela inter-relação entre elas. A conversa, no entanto, continua mediada pela câmera subjetiva, sem que ele apareça. Recurso usado por Robert Montgomery em “A Dama do Lago”. No que o filme reforça a antiga idéia de que é preciso ver para além da imagem. Não é apenas o que se vê na tela que permite compreender o que buscam roteirista e diretor. Existem outros vértices.

            Apenas pelo que se vê na tela, no caso de “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” é quase nada. Diálogo interior joyceano (“Ulisses”), fluxo de memória resnesiano (“Ano Passado em Marienbad”) seriam tão só recursos estilísticos, formais, caso não estivessem articulados nas duas partes finais, com a interação “passante solitário”/gente comum e o mergulho de Zé Renato em seu fracasso conjugal. Principalmente dando voz aos deserdados. É quando o filme ganha significado, se justifica, caso contrário terminaria sendo um exercício estéril, formalista, hermético, voltado para os que adoram o cinema da imagem pela imagem.

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo”. Drama. Brasil. 2009.76 minutos. Direção/Roteiro:Karim Ainouz/Marcelo Gomes. Elenco: Irandhir Santos.

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