“Caterpillar”: Herói de papel

Em filme sobre a construção do herói, diretor japonês Koji Wakamatsu discute as atrocidades praticadas pelas tropas nipônicas na China durante a II Guerra Mundial

               Com imagens poderosas, uma historia dotada de conflitos suficientes para tirar o espectador da letargia, o veterano diretor japonês Koji Wakamatsu (Wakuya,1936), toca em  “Caterpillar”  nas feridas ainda não cicatrizadas da participação de seu país na II Guerra Mundial (1939/1945). Sem o temor de tocar em tabus, ele discute a construção do herói, a manipulação da ingenuidade do camponês para efeitos bélicos, a veneração de seu povo ao Imperador Hirohito (Tóquio. 1901/1989) e, sobretudo, as milhares de mortes causadas pelas bombas lançadas pelos EUA em Hiroshima e Nagasaki e os milhões de soldados mortos nos campos de batalha e de civis em suas regiões.

Seu filme trata da guerra no front sinojaponês através da história do tenente Kurokawa (Shinobu Terajima), que retorna à sua aldeia sem braços e pernas, e sua relação com a companheira Shigeko (Shima Öhnish). Ele tem sua imagem de herói construída pelo líder local e as autoridades imperiais, que o condecoram com as principais medalhas da nação. Ele é agora o “Deus da Guerra”, aquele que se sacrificou pelo “deus Imperador”. Seus “feitos” logo se espalham, ele passa a circular em trajes militares pela aldeia num carrinho de mão empurrado por Shigeko, e logo o alistamento no Exército Imperial cresce. Inclusive seu irmão parte para o front de batalha.
Mas as sequências que tratam do militarismo e da propaganda belicista não estariam completas se Wakamatsu e seus roteiristas Hisako Kurosawa e Deru Deguchi, adaptando uma história de Rampo Edogama, não completassem o filme com o embate entre Kurokawa e Shigeko. É através dele que “Caterpillar”, campo de batalha, ganha múltiplos significados. Nele predomina o erotismo, o conflito entre amor e morte e a luta pelo poder. E fecha as duas tramas: a simbólica, da propaganda bélica e da construção do herói; e a da tentativa de Kurokawa de compensar a perda de sua mobilidade e fala submetendo Shigeko a seu desejo sexual insaciável. Às vezes ela aceita, noutra, o manipula, tanto para manter-se honrada perante os aldeões, quanto para vingar-se dele por fato ocorrido no passado.
É a relação entre eles que devagar desmonta a construção do herói. Pequenos gestos de Kurokawa, controladas reações de Shigeko, dizem mais sobre ele do que seu passeio pela aldeia. Há, no entanto, algo desconfortável nele: longe de aceitar a bajulação, ele se sente deslocado. Prefere isolar-se com Shigeko, que cuida dele não sem reações não só por seu estado, mas principalmente pelas dores e humilhações a que foi e continua sendo por ele submetida. Entende-se assim cada gesto ou escárnio dela.

                  Herói percebe-se
                  como um embuste

                  Como a não tomar partido neste embate, Wakamatsu filma-os à distância, retirando da cena todo erotismo ou complacência. Só muda o enquadramento quando ela reage e a torrente de imagens em flashback da abertura do filme ganha sentido. Com ferocidade, Kurokawa aparece perseguindo jovens chinesas escada acima. Depois, na sequência em que Shigeko despeja sobre ele sua represada ira, os flashbacks retornam mostrando-o estuprando uma jovem e indefesa chinesa. E todo arcabouço de construção do herói se esboroa. Os gritos, tapas, escárnio de Shigeko assumem caráter catártico, de triunfo perante “o herói” e, porque não, o cambaleante colonialismo nipônico.
Significados e símbolos, cuja fragilidade o próprio Kurokawa percebe ao olhar seguidamente sua foto no jornal, explodem. E ele se percebe um embuste e isto o corrói. É quando se apreende o riso de Shigeko insistindo com ele para desfilar perante os aldeões cotidianamente. Ele sabia que sua imagem de herói era falsa. Na verdade, era mais um criminoso de guerra que um herói. Wakamatsu toca aqui num tema polêmico para seu país: o das atrocidades cometidas pelas tropas japonesas na China (e não só nela) durante a II Guerra Mundial. Ainda hoje sucessivos governos nipônicos pedem desculpas às autoridades chinesas por estes incontornáveis danos.
Wakamatsu trata não só deles como da lavagem cerebral perpetrada contra os camponeses japoneses para levá-los ao front. “Caterpillar” às vezes dá a impressão de justificar o belicismo do Império do Sol Nascente tal o rigor da reconstituição propagandística. Porém, ao longo da narrativa vai desmontando-a, para no desfecho assumir a responsabilidade pelo que mostra: o deslizar de Kurokawa para o lago, enquanto Shigeko se alegra pelo fim da guerra. É quando aponta para o lado em que está. Principalmente quando informa o custo daquela construção do herói e obediência cega ao “deus imperador”: milhões de mortos provocados pelo colonialismo japonês e pelas bombas atômicas dos EUA.
Caterpillar”, exibido pelo Indie 2010 – Mostra de Cinema Mundial de Belo Horizonte, de 02 a 09 de setembro, é daqueles filmes que grudam no espectador, pois não se recusa à polêmica. Vale a pena aguardar sua exibição, caso ocorra, nos cinemas nacionais ou vê-lo em DVD.

Caterpillar”. Drama. Japão. 2010. 85 minutos. Roteiro: Hisako Kurosawa e Deru Deguchi. Direção: Koji Wakamatsu. Elenco: Shinobu Terajima, Shima Ohnish, Ken Yoshizawa, Keigo Kasuya.

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