“Um Lugar Qualquer”: Em conflito com as estruturas

 Filme da diretora estadunidense Sofia Coppola trata da solidão, da alienação e da influência da máquina hollywoodiana na vida de um ator de sucesso

                  Aparentemente um filme sobre a individualidade, “Um Lugar Qualquer”, da diretora estadunidense Sofia Coppola, acaba revelando a luta do artista contra estruturas das quais não consegue escapar. O artista, no caso, é o ator hollywoodiano Johnny Marco (Stephen Dorff), que se isola num hotel, longe de tudo, inclusive da filha Cléo (Ellen Fanning), de 11 anos. A máquina o mantém sob controle para render lucros, glamour e modo de vida para seus fãs. Seus tentáculos o alcançam há todo momento, inclusive com mensagens virtuais nada amigáveis. O que aumenta seu ar entediado, agravado pela zombaria de sua co-estrela e a queda de uma escada, que quase o imobiliza na cama.

               São com estes fios, em entrechos bem construídos, que Sofia Coppola revela Johnny para o espectador. Barbado, de jeans, camiseta e camisa flanando, ele só se sente bem ao volante de sua Ferrari. Seu mundo, formado por corredores, quarto de hotel e mesas diante da mídia, nada tem de glamoroso. É o adverso do estereótipo vendido pelos canais pagos da TV. Visto na rua, poderia ser confundido com qualquer cidadão comum. Mas, por ter construído uma persona, não escapa aos flashes, e se vê perseguido pelas ruas. Uma falta de liberdade que ele compensa mantendo-se longe das badalações, ainda que, às vezes, se permite uma e outra noitada.

              Este fugir da estrutura, segundo Sofia Coppola, tem um preço. Johnny sabe agir segundo os ditames da máquina. Cumpre cada instrução, mecanicamente. Sorri, diz o que manda o script e retorna a seu casulo. Nele, enquanto se recupera da queda, diverte-se com duas strippers, usa os serviços delas, dorme. Uma vida, em bons termos, quase vegetativa. A individualidade extrema, sem objetivos ou envolvimento com outro tipo de compromisso, termina num beco sem saída. Johnny não desfruta da fama e dos lucros que ela lhe proporciona. Nem chega a ser narcisista, é apenas um revoltado contra a máquina, sem contra ela se insurgir.

           Tudo isto transcorre em planos sequência, muitas vezes estáticos, com a ação se movendo no quadro (enquadramento), em andamento hiper-lento. Sofia Coppola, ao contrário do que ocorre no cinema hoje, não só no hollywoodiano, se permite retomar a estética dos anos 60, principalmente o Antonioni da “trilogia da incomunicabilidade”. Notadamente “O Eclipse”. Vide o plano de abertura, da piscina e do desfecho, muito emblemático de quem rompe com a estrutura que o oprime. Johnny, como corre neste tipo de personagem é prisioneiro de si mesmo, de sua visão da estrutura, quase invisível, cheia de dicas, sutilezas, às vezes nem tanto, iguais às instruções do produtor italiano.

Chegada da filha
muda Johnny

              O que o impele à descoberta da inutilidade de sua existência (e não se fala de existencialismo) é um dado quase corriqueiro: a entrada de sua filha Cléo em seu fechado mundo. Com jeito adolescente, buscando seu próprio espaço, ela vai, aos poucos, tragando-o para seu universo. De quem já tem sua própria visão do que a cerca, suas manias, trejeitos e uma feminidade que, em princípio, lhe escapa. São pequenas coisas, gestos, rotina, que nele, Johnny se traduzia em quase nada. Mas o pequeno universo da filha é mais rico do que o seu. Há, inclusive, mais afetividade. São mundos opostos, o dele para dentro, o dela para fora, em contato com o que a cerca. E acaba sendo mais forte do que o limitado universo dele.

           É exatamente o surgimento desta personagem na vida de Johnny, alguém de seu meio familiar, que permite a Sofia Coppola mostrar a alienação vivida por ele. Principalmente sua rotina mecânica. Sua individualidade é o que o prende. Ele precisa de outro tipo de contato com as estruturas, até mesmo opor-se a ela de forma mais efetiva. E Cléo é o agente dessa mudança. É de forma simples, às vezes beirando o filme caseiro, que ela, Sofia Coppola, envolve o espectador. Muitas vezes, ele, espectador, pode achar o filme enfadonho, chato, sem conflitos, grande solos da dupla central, mas basta atentar para esta simplicidade para ver sua riqueza.

             Os filmes de Sofia Coppola, principalmente “Encontros e Desencontros”, tratam na maioria das vezes de isolamento. Basta rememorar Bob Harris (Bill Murray), ele está sempre fechado em quarto de seu hotel em Tóquio, enquanto aguarda as filmagens de um comercial para a TV japonesa. E só o deixa ao se relacionar com a também solitária Charlotte (Scarlett Johansson). Com Johnny a situação é idêntica. Cléo é seu fator de encontro, de redescoberta, de mudança.

               É um personagem alta classe média, do mundo dos espetáculos, longe do cotidiano das pessoas comuns. Mas igualmente submetido a  estruturas que não lhe permitem trabalhar usando toda sua identidade. Daí sua alienação. Não poderia ser diferente, embora a maneira encontrada por ele para dela escapar tenha muito da rebeldia do herói solitário. Enquadrando-se perfeitamente na visão individualista da sociedade estadunidense. Nela há sempre a visão de que o individuo predomina, quando na verdade só o capital impera.

Um Lugar Qualquer” (“Somewhere”). Drama. EUA. 2010. 98 minutos. Fotografia: Harris Savides. Roteiro/direção: Sofia Coppola. Elenco: Stephen Dorff, Ellen Fanning, Chris Pontius.
(*) Leão de Ouro Festival de Veneza 2010.

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