“Homens e Deuses”: Fé e colonização

Resquícios da colonização francesa na Argélia, catolicismo e islamismo são os temas deste filme do diretor francês Xavier Beauvois

     O diretor francês Xavier Beauvois mexeu num vespeiro, daqueles de provocar grandes polêmicas. Em “Homens e Deuses” trata do sequestro e morte de sete monges cistercienses franceses na Argélia, em 1996. Corria o risco de estigmatizar árabes e islamitas, mas conseguiu equilibrar dramaturgia e narrativa, sem levar o espectador a buscar um culpado. Tarefa das mais difíceis, pois, passados quinze anos, os tribunais argelinos não encerraram o caso. Os motivos e os agentes responsáveis ainda permanecem obscuros.
 

     Beauvois concentra a narrativa no grupo de nove monges e no contato deles com representantes do governo, tropas do exército e guerrilheiros do Grupo Islâmico Armado (GIA). Mas o que predomina é a discussão sobre a fé dos monges para superar os impasses e levar adiante seu trabalho de evangelização dos argelinos. O recurso usado para isto é centrar hesitações e verdades na figura do monge Chistian de Chergé (Lambert Wilson), o prior dos cistercienses, na cidade de Tibherine, norte da Argélia.
 

    “Ele, pessoalmente, estudou muito o Alcorão. De manhã, ele fazia a lectio divina com uma Biblia em árabe. Às vezes, fazia a meditação com o Alcorão. (…) Ele conhecia muito bem o ambiente muçulmano e a espiritualidade sufi (…)”, conta o monge sobrevivente Jean-Pierre Schumacher ao jornalista Jean-Marie Guénois, da revista Le Fígaro Magazine (ver Blog Carmadélio). Estas leituras facilitaram a integração dos monges com a comunidade islâmica argelina.
 

      Há, neste contexto, uma discussão sobre o papel da Igreja Católica nas regiões pobres, que muito se aproxima da Teologia da Libertação. A Igreja não se preocupando só com a salvação da alma, mas tratando também das questões sociais. Os cistercienses faziam isto através da assistência médica à comunidade argelina, sob pena de serem visto apenas como colonizadores franceses. Pois o período colonial francês (1030/1962) continua vivo na Argélia. “(…) Lutamos contra isso e procuramos nos tornar mais sociáveis mutuamente. Por isso, o consultório, administrado pelo frei Luc, foi muito importante. Ele acolhia até 80 pessoas por dia! (…)”, observa Schumacher.
 

Questão é política,
não religiosa

       É esta relação com a comunidade que atraiu a atenção do GIA, que atuava na região. A luta para ele incluía o combate ao colonizador francês, responsável pelos problemas enfrentados pelos argelinos. Inclusive pela pressão contra a posse do Governo da Frente Islâmica da Salvação (FIS), vencedora das eleições presidenciais de 1990, que provocou o surgimento de vários grupos islâmicos armados. Então, o GIA começou a manter uma relação conflituosa com os monges, chegando a uma espécie de “aceitação não declarada”. O que levou o exército a suspeitar dos monges cistercienses.
 

     As razões da “aceitação não declarada” entre o GIA e os monges está mais no campo político que no religioso. As desconfianças do líder do GIA derivam do controle que eles tinham da comunidade: evangelização, assistência médica, relações sociais e econômicas. Os monges vendiam sua produção agrícola na feira-livre da cidade, compartilhando, assim, do cotidiano da comunidade. O GIA então passa a usá-los, principalmente quando de sua ação contra o grupo de croatas, e seu líder se vê obrigado a buscar socorro no convento. O poder dos monges, desta forma, fica fragilizado.
 

     Como Beauvois e seu roteirista Etienne Comar preferem centrar a narrativa na questão da fé, a política assume papel quase secundário, embora dite seus rumos até o impasse final. Este chega, quando o exército aumenta suas suspeitas sobre os monges e crescem as desconfianças do GIA sobre seu poder sobre a comunidade. Os monges têm a opção de evadir-se, buscar outros conventos, mas preferem, devido à missão religiosa, ficar em Tibhirine. Percebe-se neste momento que a discussão, ainda que religiosa, assume caráter puramente político. O que está em discussão não é mais a evangelização, mas o poder que os cistercienses tinham na região.

     O próprio monge Schumacher sintetiza: “Em um dos comunicados na rádio Medi 1, o GIA deu uma razão para a sua execução. ´As pessoas se convertiam em contato com eles, porque eles tinham relações e saiam do mosteiro, coisa que os monges não deveriam fazer. Eles merecem a morte. Temos o direito de executá-los(…)”. É ingenuidade restringir a discussão à fé; esta embute a questão do poder, ainda que Christian de Chergé não satanize o Islã. Pois o embate não é entre cristãos e muçulmanos, como quer a direita européia e estadunidense. Nenhum país islâmico ameaça a hegemonia dos EUA e da União Européia. É o sistema capitalista que está em crise profunda.
 

      Pode-se questionar a execução dos sete monges, a destruição do convento, mas a questão é simplesmente política. “É uma herança da colonização francesa”, sentencia uma autoridade argelina. Como se vê, Beauvois enfiou a mão no vespeiro e se o escondeu sob o manto da fé, deixou a questão política visível. Não é fácil curar feridas, principalmente quando continuam abertas.

Homens e Deuses” (“Des Hommes et des Dieux”). Drama. França. 2010. 122 minutos. Roteiro: Etienne Comar. Diálogos: Xavier Beauvois. Direção: Xavier Beauvois. Fotografia: Caroline Champetelier. Elenco: Lambert Wilson, Michael Lonsdale, Jacques Herlin.
 

(*) Prêmio do Júri do Festival de Cannes 2010   

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