“Satantango”: Restaram sementes
Sonhos frustrados pelo capitalismo na pós-queda do socialismo na Hungria são o centro deste filme do diretor húngaro Béla Tarr
Publicado 09/09/2011 18:04
“Satantango”, do húngaro Béla Tarr, é obra rara. Não só por suas 7h15 (435 minutos), mas também por levar o espectador do estranhamento à perplexidade, da rudeza ao sublime, em apenas 150 planos. Sobretudo pela maneira como integra personagens, espaços e narrativa. Eles se reforçam para dar sentido ao conteúdo, que, às vezes, lhe escapa. Mas cada cena traduz a beleza e a força das imagens em preto e branco, de rara lentidão, ditada pelo rigor estético de Tarr. E os meios usados por ele são mínimos.
O que conta aqui é como ele os maximiza. Poucos personagens, cenários reais e uma direção hipercriativa. “Satantango”, produção de 1994, é baseado no romance de seu compatriota e co-roteirista László Krasznahorkai, A ação se passa na fazenda coletiva de um povoado decadente. Às vésperas da queda do socialismo na Hungria (1989), ninguém se interessa mais por ela. Restam poucos trabalhadores rurais, o bar, o hotel, os prédios em ruínas e ruas e praças enlameadas, açoitadas pelo vento e uma chuva inclemente.
Sem perspectivas, os trabalhadores rurais discutem o que fazer com a indenização recebida. Uns querem simplesmente ir embora, outros aguardam o retorno do líder do grupo. Surge daí discordâncias, traições, ganância, medo de perder o dinheiro. Emerge também a figura de Eremiás (Mihály Vig), espécie de “criminoso”, ideia criada por seu interrogatório na delegacia do povoado. Não bastasse isto, os próprios adolescentes sonham, principalmente Futaki (Miklós Székely), em ficar milionários, gerando desavença entre ela e o irmão Sanyi (András Bodnár).
É nesse entrelaçar de ambições, decadência, falta de perspectivas que Tarr retira sua narrativa, formada por entrechos que se articulam em longos planos sequência, lentos movimentos de câmera, silêncios e personagens de grande densidade humana. Ao invés de ações paralelas, tão comuns hoje, ele prefere centrar a ação num personagem, para, numa narrativa circular, retomar o mesmo enquadramento, agora de outro ponto vista. Dois dos doze capítulos, estruturados em seis compassos do tango pra trás e seis pra frente, bem o ilustram: o do Doctor (Putyi Horváth) e o de Futaki.
Irimiás é o aglutinador
No longuíssimo plano sequência do Doctor, emblemático personagem do filme, ele deixa sua casa e sob chuva torrencial, frio e vento, atravessa a rua e o campo enlameado até o bar, onde briga com Futaki. Depois, na continuidade da ação, se embrenha na floresta e acaba se perdendo. Nenhum corte, todo o trajeto é feito em tempo real. Fundem-se de uma só vez, clima, densidade psicológica, estética e tragédia humana, exasperando o espectador.
Não menos impactantes são os planos sequência da adolescente Futaki. Os movimentos de câmera (travellings horizontais e verticais) que registram suas ações são tão significativos quanto os do Doctor. Principalmente o modo como trata seu gato de estimação, um dos mais brutais do cinema. Sua perambulação pelo campo, celeiro, casarão, ruas e permanência na janela do bar enquanto os adultos dançam e se embebedam, dão a medida da criatividade de Tarr. Ele registra o ponto de vista dela do lado de fora, depois o que ocorre de verdade do lado de dentro. O que ela viu não é nada exemplar.
Não menos opressiva é a vida dos adultos, confinados no bar, onde esperam Irimiás. A ação circular se repete, os diálogos se entrecruzam e o monólogo dita o que os espera. Tarr integra música, dança e suspense em passos de tango, ditados pelo acordeão. São acordes melancólicos, eivados de paixão, medo e frustrações. A atmosfera sufocante, criada pela chuva, a lama e a paisagem desolada traduz o beco sem saída em que se acham, devido à eminente derrocada do regime. Apenas Irimiás pode, para o bem ou para o mal, livrá-los dessa situação. Sua figura, misto de salvador ou líder desfaz os maus entendidos. E o filme ganha outra perspectiva.
Descobre-se, afinal, qual é o plano que ele engendra. É mais aglutinador que “salvador”. Traz mais esperança e perspectivas que desagregação. O dinheiro que os afasta, com ele torna-se esteio da aglutinação. Este é, aliás, o grande achado de Tarr e Krasznahorkai, seu co-roteirista habitual. Se a fazenda coletiva não será rentável para os futuros capitalistas, pode o ser para os trabalhadores rurais. Eles retomarão o controle dos meios de produção. E o espectador pode, então, antever o intento de Irimiás com clareza.
Se Isto torna “Satantango”, “Tango de Satã”, um filme de antecipação político-ideológica, prima também pela visão subjetiva. Há um narrador em terceira pessoa, que também é seu personagem. O espectador o compreenderá ao assistir ao filme. O que o torna ainda mais instigante. É o estado de espírito do narrador que cria a atmosfera, desvenda a trama e a si próprio. É, assim, uma obra cheia de portas que vão se abrindo. Exibido na retrospectiva de 10 longas e quatro curtas de Bela Tarr, pela 11ª Mostra de Cinema Mundial – Indie BH (2 a 8/09/2011), “Satantango” atesta a excelência de seu cinema.
“Satantango”. (“Sátántangó”). Drama. Hungria/Alemanha/Suiça.1994. 435 minutos. Roteiro: Béla Tarr/László Krasznahorkai, baseado em obra deste. Direção: Béla Tarr. Fotografia: Gábor Medvigy. Música: Mihály Vig. Elenco: Mihály Vig, Putyi Horváth,Dr., Peter Berling, Barna Mihók.