“L´Apollonide”: Lições da Casa de Tolerância 

 Sexo como mercadoria e quem se vale da tolerância nos bordéis são o centro deste filme do francês Bertrand Bonello

        Não se aborreça se lá pela metade de “L´Apollonide  – Os Amores da Casa de Tolerância” nenhum fio narrativo tenha entrelaçado os personagens, engendrando uma história. Tampouco os conflitos não lhe provoquem mais que curiosidade. E lhe pareça estar assistindo a um documentário sobre as relações de trabalho num bordel da França no final do século XIX, Este é o tema desta obra sui generis, do diretor/roteirista francês Bertrand Bonello. Em 125 minutos, ele destrincha a estrutura mercadológica do sexo pago entre  garotas da baixa classe média e a aristocracia e a burguesia francesa.
 

         Neste tipo de negócio existem a empresária, as trabalhadoras e os clientes. Marie-France (Noemie Lovovsky), dona do bordel “Apollonide”, contrata as moças que passam por entrevista, treinamento profissional, higiene pós-trabalho e cuidados com a saúde. O salário e a manutenção do emprego dependerão do respeito às regras da casa e a submissão às fantasias de banqueiros, investidores, industriais e aristocratas dispostos a pagar alto por momentos de prazer. Em suma, delas depende a lucratividade do negócio.
 

          O filme é centrado nelas. Em Pauline (Iliana Zabeth), que permite ao espectador desvendar o trabalho no palacete. Meiga, virginal, sonhadora, ela escolheu o bordel como forma de vida. As demais estão presas ao meio, sem chance de escapar. Madeleine (Aline Barnole), sempre oscilando entre o mistério e o trágico, Júlia (Jasmine Trinca), submetendo-se aos caprichos do burguês Maurice, e Samira dotando o bordel de exotismo e o misticismo. Nenhuma delas tem a força de Clotilde (Celine Sallette). Solidária às colegas, endividada com Marie-France, responde às suas ameaças de dispensa gritando que em qualquer lugar seria mais livre que no L´Apollonide e fumando haxixe.
 

           Como as demais; tem consciência de que é fonte de lucro. Numa frase, ela sintetiza sua relação com o cliente: “Vamos fazer negócio?”. E se encaminha com ele para o quarto. Quanto mais cliente tiver numa noite mais receita o bordel terá. A produção é ditada pela cama. Júlia desde o início explica esses truques a Pauline. O sádico burguês (o diretor Xavier Beauvois) os lembra a Madeleine, quando ela impõe limite às suas taras. ”Posso fazer o que quiser, estou pagando!”. Ou Marie-France pedindo a Clotilde para cobrir Júlie. “Vá, fique com dois, três…”. Qualquer semelhança com outras profissões não é mera coincidência. As regras do capital são as mesmas.
 

Tolerância no bordel
é para a burguesia


       Mas é o perfil do cliente que permite ao espectador entender o “significado de casa de tolerância”. Esta não é para a trabalhadora de sexo. É para que ela se submeta às suas fantasias. É um corpo a seu dispor. Não só isto. Preferem as filhas das camadas mais baixas, ao invés das mulheres de suas classes. Através delas a burguesia e a aristocracia dão vazão a seus desejos reprimidos. Muitas vezes com perversidade, caso de Madeleine, que vira animal exótico, numa roda de nobres, ou de Júlie expondo-se ao voyeurismo explícito de Gustave. Tudo em nome do profissionalismo em cenário de luxo.
 

         No entanto, o próprio mercado impõe seus limites. É a especulação imobiliária, não as trabalhadoras do sexo, que o mostrará. Marie-France precisa de capital para se manter de pé. Seus ricos clientes, a bem do anonimato, não virão em seu socorro. Os entrechos do filme vão se fechando. Flashbacks reforçam os de Madeleine, simbolicamente, através da seiva que mereja em seus olhos como uma flor murchando, ou usando a pantera para destroçar a potência do macho. E também o dilema de Julie, que sucumbe à doença de sua profissão e à impossibilidade do amor. Mas é Pauline que descobre, desde cedo, as armadilhas da profissão e encontra uma saída.
 

          Esses bons achados tiram o filme da tese, da pedagogia, do clichê. O clima no palacete é sombrio, de tons esmaecidos, as mulheres em sua maioria usam o claro, num contraste entre o virginal e o carnal, e os homens tons escuros, com raros brancos. Porém a trilha musical cumpre papel diferenciado. O pop liga o ontem e o hoje; acentuando as relações particulares entre Maurice e Julie, Madeleine e o jovem burguês, e as discussões entre Marie-France e Clotilde. Esta não se submete. É a ponte entre a serva e a profissional que vai às ruas buscar seu cliente na atualidade. Uma projeção e tanto. Puro cinema.
 

           O importante em “L´Apollonide” é a agudeza com que Bonello introduz uma questão normalmente tratada como descida aos esgotos ou com indisfarçável moralismo. Desde o escravagismo o corpo tem sido fonte de sustento. O capitalismo deu-lhe viés mercadológico. Hoje a profissional de rua se submete ao cafetão, ao policial, ao crime organizado. E as que servem à burguesia têm seus agentes ou os donos de books. Ainda que a revolução sexual tenha liberado as relações entre parceiros, existem outros vértices. Buñuel, em “A Bela da Tarde”, tratou da busca do prazer pelas vias da fantasia, das taras e do fetiche. O desejo tem suas próprias razões.
 

L´Apollonide – Os Amores da Casa de Tolerância”. (“Souveniers de La Maison Close”). Drama. França. 2011. 125 minutos. Fotografia: Josée Deshaies. Roteiro/música/direção: Bertrand Bonello. Elenco: Hafsia Herzi, Céline Sallette, Jasmine Trinca, Adèle Heanel, Iliana Zabeth.
 

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