A caminho das reparações da crueldade escravocrata
Não dei conta de acompanhar as duas sessões do Supremo Tribunal Federal (STF) em que analisaram as cotasraciais/étnicas, dias 25 e 26 de abril passado. A emoção era tamanha que preferi não ver.
Publicado 02/05/2012 15:03
As imagens e pedaços de discursos quevi e ouvi e a posterior leitura dos votos que asseguraram unanimidade nadecisão do STF – as ações afirmativas são constitucionais – evidenciam que, se Executivo e Legislativo nacionais historicamente se omitiram quanto à promoção de reparações a quem tem o mérito de ter construído este país no lombo, viapolíticas de ação afirmativa, fazendo valer as leis de igualdade, o STF, quando instado, pela primeira vez, não abriu mão de cumprir o seu dever de guardião da Constituição Federal.
O STF se debruçou sobre três ações quealegavam a inconstitucionalidade de cotas raciais/étnicas na universidade,ajuizadas pelo partido Democratas (DEM), em 2009, contra a UNB; o perfil doestudante do Prouni (2004): a concessão de bolsas de estudo em universidadesprivadas e que, segundo (pasmem!) a Confederação Nacional dos Estabelecimentosde Ensino (Confenem), feriam o princípio constitucional da isonomia; e aterceira ação, ajuizada por Giovane Pasqualito Fialho, "reprovado novestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para o curso de administração, embora tivesse alcançado pontuação superior a quem foi admitidopela reserva de vagas para egressos das escolas públicas e negros".
O alcance do que foi analisado e definido no STF sobre as ações afirmativas é tamanho que ouso dizer que, dealgum modo, o tribunal abriu o caminho para que, de fato, o Brasil comece areescrever a Lei Áurea, atitude que nem o Estatuto da Igualdade Racialconseguiu adotar, pois o governo o submeteu à negociação com a banda mais podredos racistas de plantão, entregando o relatório a uma figura que não teve sequer o pudor de dizer que o estupro colonial era uma miragem, pois asrelações sexuais entre escravistas e escravas eram consensuais! O resultado foiuma lei meia-boca, louvada como "o Estatuto possível" e, não, o "Estatuto necessário", suficientemente robusto para enfrentarpráticas racistas institucionalizadas no Estado brasileiro.
Entendo que todos os votos do STF,pelo conteúdo argumentativo de cada um, deveriam ser incluídos em todos oslivros didáticos de história brasileira, não apenas como uma forma de torná-losinesquecíveis, mas para que as gerações futuras tenham o acesso facilitado auma forma exemplar de cumprimento do princípio constitucional da igualdade notocante a práticas racistas naturalizadas e banalizadas na vida social epolítica brasileira.
O ministro-relator, RicardoLewandowski, foi categórico em declarar que, na efetivação do princípioconstitucional da igualdade, "o Estado pode lançar mão de políticas universalistas (de grande alcance) e, também, de ações afirmativas, que levamem conta a situação concreta de determinados grupos sociais" – o seu votoé uma peça literária, jurídica e política vigorosa e imbatível, como bem disseo ministro Joaquim Barbosa, único negro em nossa Corte Suprema, para referendarque as ações afirmativas concretizam princípio constitucional da igualdade emsociedades competitivas: "O voto de Vossa Excelência está em sintonia como que há de mais moderno na literatura sobre o tema", além do que pontuou:"As ações afirmativas não são ações típicas de governos, podendo seradotadas pela iniciativa privada e até pelo Poder Judiciário, em casosextremos".