“As Neves de Kilimanjaro”: Culpa no cartório

As neves simplesmente derretem neste filme do diretor franco-armênio Robert Guédiguian. O que era para ser uma agradável viagem ao monte Kilimanjaro, na Tanzânia, acaba se tornando uma condenação ao passado do líder sindical Michel (Jean-Pierre Darroussin). Demitido da empresa de pesca onde trabalhava e era diretor do sindicato dos pescadores, ele volta para casa, onde passa a curtir os netos e a companheira Marie-Claire (Ariane Ascaride).

No aniversário de 30 anos de casamento, os amigos, entre eles o concunhado Rauol (Gérard Meylan), presidente do sindicato, lhes dão euros de presente para que ele e a mulher, enfim, façam o almejado tour.

O enredo, traçado por Guédiguian e seu coroteirista Jean-Louis Miles, é de um drama familiar, com as naturais dores de cabeça. Nada demais acontece, salvo um e outro contratempo cotidiano. Como ocorre nos filmes de Guédiguian sob o manto da tranquilidade há um vulcão prestes a explodir. Foi assim em “A Cidade Está Tranquila”. A mãe vai aos poucos percebendo que a droga consome a filha. E não tem outra solução senão sacrificá-la. É de uma crueza difícil de suportar. Com Michel não é diferente. Durante jantar em sua casa com Raoul e Denise (Marilyne Canto), mulher deste e sua cunhada, dois assaltantes levam os euros ganhos de presente.

A sonhada viagem em ”As Neves do Kilimanjaro”, título homônimo do filme de King Vidor (1952), baseado na obra de Ernest Hemingway, irá desencadear profundas mudanças na vida de Michel. Não daquelas vistas nos filmes hollywoodianos. De ele sair à procura dos ladrões para reaver o dinheiro, mas trazer para a tela as armadilhas da luta sindical nestes tempos de crise neoliberal. Ele, quando diretor do sindicato, fez acordo com o patronato que, aos olhos de Christophe (Grégoire Leprince-Ringuet), um de seus algozes, prejudicou a categoria. Portanto, ao invés de garantir emprego, levou à demissão de vários pescadores.

Este é o tema central do filme. Parte de uma questão aparentemente banal, o assalto, para mergulhar o espectador numa questão vivida pelos trabalhadores em todos os continentes. O papel do líder sindical, na visão de Christophe, é verificar a quem interessa o acordo feito com o patronato. Ao sindicato, por tentar acomodar posições, à categoria por não se envolver politicamente ou ao capitalista que preserva seu negócio em meio à crise. Michel e Rauol, numa caminhada pelo porto de Marselha, se sentem traídos, pois “fizeram o que deviam” e lutaram para ter um bom padrão de vida.

Paliativo não redime Michel

Christophe, pelo contrário, está desempregado, deve o aluguel, a escola dos dois filhos pequenos e a mercearia. Não tem quem o ajude, pois a mulher Flor, o abandonou e aos filhos. O filme é de 2011, auge da crise européia, que gerou mais de 20 milhões de desempregados na Europa. A maioria jovem, como ele. Enquanto Sarkozy injetava bilhões de euros nos bancos franceses para salvá-los da bancarrota à custa dos trabalhadores que ficaram sem emprego, sem casa, sem assistência social e sem futuro. O sindicato dirigido por Michel e Raoul, diz Christophe, não defendeu a categoria, caindo na armadilha patronal ao aceitar as demissões.

Dá para sentir a seriedade da linha adotada por Guédiguian. Ele segue um caminho, à maneira das fábulas com fecho moral, para condenar certo tipo de sindicalismo conciliador, para não dizer pelego. Mas desta vez não é contundente. Prefere também conciliar. Michel, afinal, procura se redimir, assumindo responsabilidades pós-consequência de seus atos como diretor sindical. Christophe se revela mais ousado e radical do que ele. Além de não aceitar sua conciliação, prefere arcar com a condenação de seu ato, pois, em sua visão, a situação vivida por ele e seus filhos a justifica.

Pode-se dizer que ele devia ser punido. A questão não é esta. Ele já foi punido por seu ato e pelo desemprego. O futuro de seus filhos, como os de milhões de desempregados, é incerto. Michel, na tentativa de recompensá-lo, quer purgar seus erros. Ele falhou como líder sindical. Devia ter obtido maiores concessões do patronato e preservado o emprego da categoria, mesmo em meio à crise. Guédiguian projeta, assim, outra discussão. A da união sindical para exigir do governo central políticas de proteção aos trabalhadores, garantias hoje inexistentes na União Europeia e nos EUA.

Christophe é o personagem positivo, aquele que espelha a consciência de classe. Michel e Raoul, cooptados pela classe média, encontram num paliativo a solução para amenizar a permanente luta de classe. Não fosse por Christophe, o filme, baseado no poema “Os Pobres”, de Victor Hugo, seria o reflexo da má consciência de classe. Cuidar dos filhos de sua vítima, não redime os erros de Michel. Os filhos dos pescadores que tiveram o mesmo rumo que Christophe não terão o mesmo amparo. Poder-se-ia dizer, à Esopo: não tente se redimir só perante àquele que reclama. Os outros irão lhe cobrar a mesma recompensa.

“As Neves do Kilimanjaro”. “Les Neiges Du Kilimandjaro”. Drama. França. 2011. 107 minutos. Fotografia: Pierre Milon. Roteiro: Robert Guédiguian/Jean-Louis Miles. Elenco: Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan, Gregoire Laprince Ringuet, Marilyne Canto.

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