“A Fonte das Mulheres” – Contra a submissão
As raízes da submissão das mulheres árabes são discutidas pelo diretor judeu-romeno Radu Mihaileanu neste seu último filme
Publicado 26/07/2012 19:38
Numa das tarefas mais difíceis, dada à aridez do tema, o diretor judeu-romeno Radu Mihaileanu (Bucareste, 1958) usa a fantasia para discutir a situação da mulher numa nação islâmica, a persistência do patriarcado e a função da educação para modernizá-la. O canto, a dança e o drama permeiam a narrativa deste “A Fonte das Mulheres”, lhe dando um clima das “mil e uma noites”. Toda a ação se dá numa aldeia árabe perdida nas montanhas, dominada pelo Imã, líder religioso, e o Sheik, líder político, que a mantém num estado medieval. Cabem às mulheres as tarefas pesadas e aos homens o trabalho mais leve.
A insubmissa, Velho Fuzil (Biyouna), alusão à sua resistência de mãe de 19 filhos, com apenas sete vivos, não cansa de reclamar da persistência deste entrave. Todo dia o grupo de mulheres sob o morro pedregoso para lavar roupa e levar para casa dois pesados tonéis de água numa vara atravessada nas costas. Inúmeras grávidas perderam o filho nesta labuta. Depois de tentar convencer, sem sucesso, os companheiros a substituí-las, elas decidem fazer a greve do sexo.
Para uma sociedade patriarcal, centrada nos preceitos do Islã, esta atitude desencadeia uma série de reações. Mihaileanu vale-se do canto para situar a posição da mulher e mostrar ao homem o quanto ela é penosa. “Nem a água vocês trazem/vocês não tem mais braços/A árvore está estéril/Ouça sua mulher”. E desta forma o movimento que se alastra, desnorteando o Imã (Mohamed Tsoula), o Sheik e seus companheiros. Toda estrutura patriarcal, a partir daí, é contestada. No entanto, como se trata de um filme de Mihaileanu, a ideologia, a política, a questão social, são o moto gerador da ação.
As mulheres, diante da reação dos líderes da aldeia, ampliam sua contestação. Já não se insurgem apenas contra a relação de gênero. Avançam para a educação, vista por Leila (Leila Bekhti), a jovem líder do movimento, e seu companheiro, o professor Sami (Saleh Bakri), como a luz que vai tirar as jovens da aldeia do atraso. E seu jocoso canto sintetiza suas agruras: “Não há água/Sua semente não fertiliza nosso belo solo/Quero uma geladeira e remédios/ Uma máquina de lavar/Quero um Mercedes”.
Submissão da mulher é puro subterfúgio
A cada reivindicação delas, as carências de infraestrutura da aldeia vão surgindo. Então a persistência do arcaico, do patriarcal, deixa de ser, apenas ela, o entrave para o desenvolvimento. Sãos as forças políticas conservadoras que mantém as mulheres e todos os aldeões no atraso. Num elucidativo diálogo com o prefeito, Sami ouve deste, quando reclama: “É melhor não levarmos a luz e a água para a aldeia, pois assim as mulheres vão continuar a buscar água. E olhe, se atendermos o que elas pedem, daqui a pouco vão querer geladeira (citação não literal)”.
Esta interligação do particular com o geral é um dado importante no filme. Mihaileanu vai aos poucos vai dando conta de cada pilar da superestrutura. O último deles é o próprio Islã. Leila, numa interpretação intensa de Bekhti, percebe que não basta se insurgir só contra os homens, o sheik, a autoridade maior da aldeia é o velho Imã. A conversa entre eles é brilhante. Ele lhe diz que o Islamismo prega a submissão da mulher ao homem, ao que ela responde:
”O Islã nos dá regras de vida em comunidade, respeito, amor, e sacia nossa sede de espiritualidade/Ele nos eleva/Eleva todos os homens e mulheres/Todo o resto é apenas interpretação, desvio da escritura por interesses pessoais”. O Imã, que a ouviu silencioso, termina por balançar. Porém, Mihaileanu e seus coroteiristas Alain-Michel Blanc e Catherine Ramberg, buscam não reforçar dogmas, certezas que não resistem à análise histórica. O fazem numa ríspida conversa de Velho Fuzil com o filho Nassin (Reda Benaim), que se opõe ao Imã: “Não adianta exigir mais o véu. Ele no passado servia apenas para separar as escravas das mulheres virtuosas”, explica, dando a idéia de que seu uso perdeu o sentido.
O olhar crítico de Mihaileanu ao desvendar passo a passo a sociedade árabe, a partir de seu microcosmo, a aldeia, não se prende apenas ao medieval. Dois instrumentos da modernidade se fazem presentes em sua convivência com o arcaico: o celular e a TV. É por influência das novelas mexicanas que a jovem Loubna (Hafsia Herzi), cujo pseudônimo é Esmeralda, atenta para o sexo e a vida para além da aldeia. Mas é o movimento que a faz romper com os laços nativos que a prendem e seguir em frente.
Esta abordagem não impede Mihaileanu de dotar seu filme de leveza, agilidade, humor e, sobretudo, captar o frescor da cultura árabe. São belas as sequências de canto e dança tradicionais de homens e mulheres. Embora, acadêmica, com poucos movimentos de câmera, sua estética, forma, serve ao conteúdo. É plástico e dialético, sem ver a sociedade árabe pelo viés ocidental, cheio de preconceitos e superioridade, quando, na verdade, as potências imperialistas são as grandes responsáveis para mantê-la nas trevas.
“A Fonte das Mulheres”. (“La Source dês Femmes”).
Drama Político. França/Bélgica/Itália. 135 minutos. 2011.
Fotografia: Glynn Speeckaert. Música: Armand Amar.
Roteiro: Radu Mihaileanu Alain-Michel Blanc/ Catherine Ramberg.
Direção: Radu Mihaileanu.
Elenco: Leila Bekhti, Hafsia Herzi, Biyouna, Saleh Bari, Hiam Abbas.
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