“Febre de Rato” – República da provocação
Diretor pernambucano Cláudio Assis coloca poeta anarquista para espancar o Brasil conformista
Publicado 26/07/2012 20:05
O cineasta pernambucano Cláudio Assis gosta de ser visto como instigador. De fato, em “Amarelo Manga (2002)” e “Baixios das Bestas (2007)”, seus dois filmes anteriores, não sobraram provocações. Talvez não tenha passado disto. Neles havia “estética suja”, estruturada para gerar controvérsias pela forma e, principalmente, pelo conteúdo. E valeu pela contraposição à estética hollywoodiana, comum hoje no cinema nacional – cheia de pretensão e criatividade de menos. Goste-se ou não de seus filmes, tem-se que admitir: Assis criou seu espaço.
Se antes havia mais pretensão que efetividade, “Febre de Rato” resgata o filme que cria não só universo próprio como conta uma boa história. Existe nele um contraponto à sociedade consumista, acomodada, que não projeta o futuro ou ruptura com o status quo capitalista. Assis e seu costumeiro roteirista Hilton Lacerda se munem do escracho, da carnavalização macunaímica, do sexo grupal, do beber desenfreado e do deboche para tirá-la do eixo. Toda filosofia do poeta Zizo (Irandhir Santos) sintetiza-se na estrofe de um de seus poemas: “As pessoas espancam seus sonhos”. Não é outra coisa o que hoje acontece.
À sociedade consumista, Zizo contrapõe a “república anarquista” do mangue recifense. Ele é o herdeiro tardio do “poeta do mimeógrafo” dos anos 60 e 70, época da Ditadura Militar. Diferencia-os apenas o faro marqueteiro com que Zizo difunde suas idéias e poesias na república anarquista e nos bairros classe média recifenses. Seu jornal “Febre de Rato”, apropriação do “está fora de ordem popular”, rodado numa impressora de fundo de quintal, bem traduz sua opção alternativa. Seus esteios, no entanto, estão cheios de contradições e fragilidades.
Vive em constante êxtase dionisíaco numa caixa d´água usada como piscina, festas regadas a cerveja e embaladas por seus poemas. Neste clima hedonista, ele é centro da atenção, o canalizador das energias reprimidas. É o líder dos deserdados e das deserdadas. É o agitador das massas, circulando pelas ruas de Recife com seu megafone. Estas ações sintetizam seu objetivo: tirar os acomodados do horizonte estreito e atraí-los para êxtase dionisíaco. Sua explícita contradição é tratar a mulher como objeto de prazer. Mesmo que não projete preconceito estético, de idade ou de etnia.
Anarquia em oposição à ordem e progresso
Até defrontar-se com a jovem Eneida (Nanda Costa|). De novo a recorrência ao mito, que ele mesmo critica, por ser recorrência grega do poema do italiano Virgílio. “Não tem nome brasileiro em sua família?”. Daí surge o Zizo que idealiza a mulher, ser inatingível, capaz de aprisioná-lo. Então o viver em pleno êxtase poético, cede lugar ao homem comum, capaz de externar o afetivo. Assis cria, assim, um universo próximo ao do Pier Paolo Pasolini de “Pocilga” e de “Saló, os 120 Dias de Sodoma”: beira o primitivo, do sexo às ações cotidianas, com suas implicações sadomasoquistas. Já que não se ama, consome-se.
Embora apaixonado, ele quer desmistificá-la, enquanto ser idealizado. A escatológica sequência em que ela se deixa observar numa ação fisiológica, mescla prazer e desmistificação. E, a partir daí, ela se desconstrói. A ponto de submeter-se a seu comando em plena praça onde se dá a Parada de Sete de Setembro. Permanece, no entanto, a idealização – ela continua inatingível, não se integra ao universo dele – transita por outros espaços e tendências.
As demais mulheres, principalmente Vanessa, sempre às turras com o coveiro Josué (Mateus Nachtergaele) se prestam a outras vertentes. Elas vivem para suas paixões. Predomina, no entanto, a estigmatização da jovem afrodescendente como ser essencialmente erótico, em constante excitação. Estereótipo que se fixa no inconsciente do brasileiro e serve à imagem como a mulher negra é vista pela sociedade. Ela está ali para compor o diverso, tantas vezes mostrado pelas mídias. Mas Assis, sempre um provocador, não almeja o politicamente correto. Assim, acaba por reforçar o estigma.
O mais emblemático do filme é seu desfecho. Uma sucessão de símbolos, dogmas, mitos, configurados nos ativistas da República Anarquista, na bandeira nacional, nos militares em desfile, na classe média catequizada e no povo observador durante a parada de Sete de Setembro. Ao lema “Ordem e Progresso” contrapõe-se a desconstrução operada por Zizo. Ele põe em seu lugar a imprecação e o desnudar de corpos em plena avenida. Assis e Lacerda levam-no a sucumbir às suas contradições, sacrificando-o. Impossível não ver nisto a pessimista idéia de que as utopias, mesmo anarquistas, faliram.
Ainda assim, Assis consegue ser contundente. “Febre do Rato” é seu filme melhor acabado. Ganhou muito com a fotografia de Walter Carvalho. Os movimentos de câmera, os enquadramentos, a luz e, notadamente, a encenação são precisos, superam em muito a “estética suja”. Perdeu o tom supostamente anárquico, certa pobreza técnico/estática (muitas vezes devido à carência de recursos), e criou um universo fílmico rico, onde atores como Irandhir Santos podem dar vazão a seu inconsciente. Uma boa provocação.
“Febre de Rato”.
Drama. Brasil. 2012. 110 minutos.
Fotografia: Walter Carvalho.
Música: Jorge du Peixe.
Roteiro: Hilton Lacerda.
Direção: Cláudio Assis.
Elenco: Irandhir Santos, Nanda Costa, Mateus Nachtergaele, Juliano Cazarré.