“Violeta Foi Para o Céu” – Fiel a seu povo
Na cinebiografia da compositora, cantora e artista plástica chilena Violeta Parra, o diretor Andrés Wood concentra-se no ser humano e em sua arte
Publicado 26/07/2012 20:16
Dizem os indígenas chilenos que as crianças migram para o céu. O diretor chileno Andrés Wood fala o mesmo de Violeta Parra (1917/1967) neste seu “Violeta Foi Para o Céu”. O ditador-general Augusto Pinochet, temeroso de sua influência sobre as camadas populares, proibiu suas criações musicais, poéticas e plásticas. O que reforçou seu mito. Esta sua cinebiografia, baseada no livro de seu filho, Angel Parra, centra-se na mulher, em sua arte, suas origens – era filha de índia com descendente de espanhol – e suas paixões.
Wood desvenda, assim, sua aspereza, intratabilidade, fragilidade e urgência para preservar a cultura de seu povo. Aparece nas salas de aulas, onde o pai leciona, nas bodegas onde o acompanha em suas bebedeiras e canto acompanhado ao violão. Ali ela aprende cantar e dedilhar as cordas. Descobre também o que é a miséria e o valor do que a cerca. E sonha em ultrapassar as montanhas onde vive. Suas primeiras apresentações são com a Irmã nos grotões onde a religião dita as normas e eterniza a miséria.
A câmera de Wood está ali para registrar seus primeiros passos, mas também para mostrar sua capacidade de driblar as imposições da Igreja Católica. O povo que a assiste aplaude, cria uma unidade com ela. Daí, Violeta (Francisca Gavilán) ultrapassa as montanhas, ganha o mundo. Na Polônia comunista justifica sua posição: a de levar a cultura chilena ao mundo. Pôde mostrar que além de cantar, podia tecer e pintar, corrigindo a visão que o europeu tinha da arte indígena chilena.
É esta Violeta que ganhará espaço no Museu Louvre, em Paris, e se insurgirá contra o diretor do museu que a manda fazer um lanche na cozinha, enquanto a burguesia, que a ouviu e elogiou suas tapeçarias e telas, regalaria farto coquetel. É a porção insubmissa de Violeta, denunciando o preconceito francês. Mesmo famosa no exterior, ela voltou para as montanhas. Com a ajuda do prefeito cria sua universidade de arte popular. Seu sonho, no entanto, torna-se pesadelo – pela dificuldade do projeto e estar dividida, aos cinquenta anos, entre a arte e a paixão pelo músico suíço Gilbert Favre (Gilbert Favre).
Faltou tratar da vida política
Se Wood não deixa de mostrar o lado briguento e intragável dela; em sua relação com Favre emerge outra faceta: a da filha das precárias condições sociais, que se descobre feia e velha. Traz no rosto as marcas da varíola, o corpo sofreu as penalidades dos anos e não pode competir com a concorrente boliviana do amado. Este conjunção de vida artística e vida amorosa, vida artística e vida familiar dão profundidade ao personagem/Violeta. Capaz de reunir pessoas à sua volta no princípio acaba por afastá-los. Wood usa a simbologia do olho do galo prestes a ser caçado pelo gavião para antecipar o sentido trágico de sua vida. E a ele sempre retorna, como se a reforçá-lo.
A varíola também matiza, a partir da infância, o que será sua maturidade. Percebe-se o quanto ela foi vítima da miséria e da falta de meios para não ser marcada como acabou sendo. Tornou-se uma imperfeição, uma sentença. No entanto, sua vitalidade, consciência e genialidade foram suficientes para não se tornar escrava da estética. Pode parecer uma questão menor – só a veem assim os que não convivem com as marcas das oligarquias nos corpos dos marginalizados, como tatuagens de seu poder.
Só a arte de Violeta traduz sua luta para dar voz a seu povo. Sua figura se agiganta nos teatros, na tenda da universidade popular, nas praças e na televisão. O vai-e-vem dos closes, dos grandes planos, dos flashbacks da infância, da juventude e da maturidade vêm num crescendo, mesclando seu aprendizado, o registro das criações indígenas e, por fim, seu sucesso. Este estilo sanfona visto também no filme de Paolo Virzì: “A Última Coisa Bela” – dá conta da intenção de Wood de desvendá-la. Mostra sua gênese e o que resultou dela. Nada veio do acaso: Violeta é uma criação de seu meio.
Mesmo frente às inúmeras dificuldades, ela não sucumbiu à sedução das elites, da fama e do glamour, daí a sua dignidade. Com a inteligência e o talento que tinha seria fácil. Embora Wood não trate de sua militância de esquerda, de sua visão comunista (ela não foi à toa se apresentar na Polônia socialista); enfatiza sua opção em manter-se fiel à sua classe, ao seu povo, às suas raízes. O vazio na tenda, quando a esperava cheia é significativo: a idealização do povo sem sua efetiva participação nos projetos a ele destinado; sempre gera descompasso – ainda assim, Violeta plantou sementes, cujos frutos permanecem para além do que ela própria imaginou.
Tornou-se uma das vozes inspiradoras das esquerdas latino-americana. Difícil ouvir “Graças a La Vida”, sem lembrar Elis Regina. Mas é instigante ouvi-la entoar uma das canções-símbolo da luta contra as ditaduras de qualquer continente: forte, profunda, revolucionária. Violeta ainda não se foi.
“Violeta Foi Para o Céu”. (“Violeta se Fue a los Cielo”).
Cinebiografia. Chile/Argentina/Brasil. 2011. 110 minutos.
Fotografia: Miguel Juan Littin.
Música: Violeta Parra.
Roteiro: Eliseo Altunaga, Rodrigo Bazaes, Guilhermo Calderun, Andrés Wood.
Elenco: Francisca Gavilan, Thomas Durand, Christian Quevedo, Gabriela Farías, Ana Fuentes.
(*) Prêmio Melhor Filme Cinema Mundial do Sundance Filme Festival 2012.