“Intocáveis”: Mais do mesmo

Filme da dupla francesa Eric Toledano/Olivier Nakache tenta fazer rir usando o politicamente incorreto e resvala para o clichê e a estigmatização racial

Comédias são para ser levadas a sério. Por mais que repitam clichês, se escorrem na caricatura, na gesticulação exagerada, em situações que beiram o ridículo e os atores se divirtam mais que o espectador – tendem a criticar o comportamento da sociedade.Ou partem simplesmente para a gozação. Este é o caso de “Intocáveis” da dupla francesa Eric Toledano/Olivier Nakache, que coloca dois personagens disfuncionais em situações que resvalam para o constrangedor e o velado preconceito racial.

A partir de uma história real, ela se fixa na relação do ex-presidiário senegalês Driss (Omar Sy) com o milionário tetraplégico Philippe Pozzo (François Cluzet) para provocar riso. Nasce daí a comédia politicamente incorreta, que troca os seres reais pela ficção. O verdadeiro cuidador da pessoa com deficiência é árabe, marroquino, e com seu trabalho trouxe o patrão francês à vida. Seria interessante vê-lo em situações cômicas, fora dos estereótipos que mostram árabes como “terroristas”.

A Dupla preferiu torná-lo um imigrante africano que devolve à vida o recluso milionário, preso à cadeira de rodas e trancado em sua mansão no centro de Paris. É uma maneira de trazer o tema para a identificação fácil. E Driss, quando aparece, já foge aos padrões. É o único que está na fila como candidato à vaga de cuidador sem ter pretensão alguma ao emprego. Quer apenas se valer da situação para manter o seguro desemprego. E sua sem-cerimônia diante de Philippe já mostra quem ele é; um excluído.

Expulso de casa pela mãe adotiva torna-se um deserdado, o coitado que precisa de amparo. Sua entrada na vida de Philippe exige do espectador acreditar na inverossimilhança típica das comédias, pois do contrário deixará o cinema. Dois seres tão díspares, devido à situação em que vivem se repelem em princípio e depois se amparam um no outro. Os desiguais se tornam iguais. Não só pela maneira como a Dupla estrutura o filme, mas, sobretudo, graças aos dois ótimos atores, Sy e Cluzet, e sua empatia com o espectador.

Driss é o bobo da corte

Nisto se constitui o esteio do filme. Em como eles irão se suportar, trocar experiências e aprender um com o outro. Dito desta forma parece ser uma obra e tanto. A dupla, no entanto, não está interessada nisto. Quer retirar das diferenças entre eles o humor – da bonomia de Philippe ao deslumbramento de Driss com o luxo em que passa a viver na mansão. Ele se sente lisonjeado, tenta seduzir a secretaria e torna-se amigo da governanta. Não tem senso crítico algum, procura amoldar-se às circunstâncias sem ver como elas foram criadas. Quando muito se insurge contra a filha adolescente de Philippe.

Mesmo que suas interferências na vida do patrão sejam inoportunas e sua linguagem inapropriada, elas só fazem o contraste entre as “boas maneiras” e o comportamento dele, povo. São para diferenciar personagens, não para configurar o quanto ele, Driss, usa seu modo de ser para atrair o milionário para sua realidade. Esta só surge em algumas sequências, como as da crítica de Driss à arte abstrata e do aparecimento de seu irmão adolescente na mansão. É a ligação entre a vida real e a fantasia vivida por ele como cuidador. No mais, ele está ali para divertir Philippe.

Mas ao mostrá-lo assim a Dupla resvala para o preconceito, do “bwana-buwena” que tenta agradar de qualquer jeito. E que Philippe apega-se a ele por isto. Por tornar sua condição de tetraplégico menos dolorosa, menos isolada, através da brincadeira, não de alguém que o trata como igual, sem fixar sua condição de dependente. Esta o tornou arredio, inseguro, descrente dos que cuidam dele. Pouca relação tem com o mundo exterior, salvo pelas cartas que troca com as “namoradas” com as quais jamais se encontrará. Driss leva-o a mudar esta visão. E seria o ponto positivo do filme, não fosse a estigmatização.

Driss está sempre pronto a salvar Philippe de situações constrangedoras. É isto que este espera dele. Como em sua festa de aniversário. É um longo entrecho onde impera o pastiche, o clichê da bela sequência do líder hippie Berger (Treat Willians) dançando na extensa mesa da mansão burguesa, em “Hair”. O que era ácida crítica nos anos 70 vira apenas encenação. Driss usa o rock para satirizar a música clássica, o sono que o violino dá em contraste com a energia provocada pela guitarra. Embora provoque muxoxos, acaba divertindo os burgueses com seus trejeitos. De novo, é o que se espera dele.

Se o tema central claudica, dois subtemas quase o justificam: as tentativas de Driss de seduzir a loira secretaria de Philippe. Ela o trata com distanciamento. Ele insiste em abordá-la. Quando, enfim, consegue a atenção dela há uma reversão. Há uma terceira via nas relações de gênero atuais. E ele compreende. A outra é o uso que faz de sua experiência de “homem da rua” para enfrentar a violência e o machismo do namorado da filha do patrão. A mudança é hilariante. No entanto é muito pouco para uma comédia que quer ser popular e ser levada a sério. Só dá para rir amarelo.

“Intocáveis” (“Intouchables”).
Comédia.
França. 2011. 112 minutos.
Musica: Ludovico Linaud.
Fotografia: Mathieu Vaddepied.
Roteiro/direção: Eric Toledano e Olivier Nakache.
Baseado no livro “O Segundo Suspiro”, de Philippe Pozzo di Borgo. Elenco: François Cuzet, Omar Sy.

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