“Em Nome de Deus”: Uso indevido
A tênue linha entre a ação política e o uso indevido do Islamismo é mostrada neste polêmico filme do cineasta filipino Brillante Ma. Mendoza
Publicado 04/12/2012 18:38
Dizer que um filme é baseado em fatos reais não garante 100% de veracidade. Sempre há espaço para a ficcionalização da realidade. Daí o espectador ao assistir este impactante “Em Nome de Deus” deve atear-se durante 120 minutos aos detalhes de inúmeras situações para não se confundir. Quem diz defender uma causa, pode estar agindo contra ela. Existe, assim, uma diferença entre a teoria e a prática.
O filme é baseado em fatos reais, informa o diretor/roteirista Brillante Ma. Mendoza nos letreiros iniciais. Em 2001, o grupo muçulmano filipino Abu Sayaf pretendia sequestrar funcionários do Banco Mundial, hospedados no resort Das Palmas, na Ilha de Palawan. Chegou atrasado e, para compensar, sequestrou doze turistas e religiosos. Em princípio parecia uma ação política, mas ao longo dos entrechos, ela se transforma no uso do Islamismo para justificar o sequestro. Vê-se, então, a dificuldade de Mendoza para não estigmatizar os muçulmanos.
Ele e seus co-roteiristas Patrick Bancarel, Boots Agbayaki Pastor e Arlyn Della Cruz preparam o espectador, desde o início, para não confundir o Abu Sayaf com os reais defensores da causa muçulmana. O grupo, que se diz seguidor de Bin Laden, logo recolhe joias e dinheiro dos sequestrados, ameaçando a chinesa (“Todos os chineses são ricos”), o casal de filipinos, dono de uma revista de turismo, e a assistente social francesa Thèrése Burgone (Isabelle Huppert), que acompanha a idosa Soledad Carpio.
Mendoza tenta fugir à estigmatização
O que o grupo faz, a partir daí, é separá-los entre cristãos e islamitas. Uma divisão que não irá opor uns aos outros. E mostrar quem são, de fato, os integrantes do Abu Sayaf. Eles vão se enredar em ações espetaculares, que permitem Mendoza usar recursos de filmes de guerra. Dentre eles, os de Oliver Stone em “Platoon”, no qual a floresta é, a um só tempo, abrigo e prisão. O horror para os sequestrados e armadilhas para o Abu Sayaf. O inimigo, para ambos, pode surgir detrás de uma árvore, em meio à chuva inclemente.
A cada confronto com o Exército filipino, o Abu Sayaf vai mudando seus objetivos, até se mostrar quem realmente é: um grupo que se apropria do islamismo para perpetrar sequestros. E vai mudando de tática, ao longo dos meses que duram sua ação, para justificar seu ato. Tenta, em certos momentos, dar-lhe conteúdo político, ao reivindicar a devolução da Ilha de Mindanao (segunda maior das Filipinas), cuja autonomia se discutia então, e acusar o governo filipino de não querer negociar (Os muçulmanos são entre 5 e 10% da população da ilha de cerca de 23 milhões de habitantes, onde a maioria é cristã).
O Abu Sayaf o faz para valorizar o resgate, principalmente dos cristãos ainda cativos, não para denunciar o imperialismo europeu-estadunidense, e tampouco a perseguição israelense aos palestinos. O único momento que disso escampam, é quando festejam a queda das Torres Gêmeas, em 11/09/2001. Para melhor situá-los, Mendoza os individualiza através de seus líderes e do ”soldado”, o adolescente Hamad, que vigia Thèrése. Vêm-se, desta forma, quem são eles e quais são seus propósitos.
Mas o filme ganha em densidade humana, quando trata dos sequestrados, inclusive das enfermeiras tornadas reféns. Resta-lhes apenas a solidariedade. Thèrése, espécie de consciência do grupo, percebe em meio ao horror que o adolescente Hamed é tão vítima quanto ela. Eles se aproximam como a mãe do filho, num belo instante de ternura. Serve para Mendoza passar do geral para o particular, dotando o filme de símbolos: o da serpente que engole o pássaro, como se a floresta aprisionasse reféns e sequestradores.
Exército age com brutalidade
Há, além disso, momentos de respeito ao ritual cristão no funeral da idosa Soledad Carpio, do uso de ervas para socorrer o ferido John, da criança nascendo em meio ao tiroteio no hospital. É a dialética da vida. O lírico penetrando a dura carcaça das ações condenáveis. Mendonza já o havia feito em “Lola”, da mãe que tudo faz para livrar o filho da cadeia. Agora é Thèrése procurando entender as motivações do adolescente Hamed. O que dele obtém elucida a capacidade do homem sobreviver às adversidades de seu meio.
Neste encadeado de fios dramatúrgicos, o governo central surge como insensível à sobrevivência dos reféns. Os ataques do Exército são brutais, pondo em risco a vida de quem devia resgatar. Às vezes agem sem entender a natureza do Abu Sayaf, como na sequência do ataque ao hospital. Destroem o que era útil à população. Mendoza, deste modo, não poupa lado algum.
No entanto fica a impressão de que neste tipo de filme sempre há o risco de se estigmatizar os muçulmanos. Mesmo tomando os devidos cuidados. Mendoza, sem dúvida, sabia do risco. A informação final, antes de subir os créditos, bem o confirma. Nestes tempos em que os inimigos estratégicos do imperialismo são os muçulmanos (e não só eles), todo cuidado é pouco.
“Em Nome de Deus” (“Captive”).
Drama. Filipinas, França, Reino Unido, Alemanha.
2012. 120 minutos.
Música: Tereza Barrozo.
Fotografia: Odyssey Flores.
Roteiro: Brillante Ma. Mendoza, Patrick Bancarel, Boots Agbayaki Pastor e Arlyn Della Cruz. Direção: Brillante Ma. Mendoza.
Elenco: Isabelle Huppert, Katty Muluille, Rustic Carpio, Ronnic Lozano.