"Holly Motors”: Caos cotidiano
Cineasta francês, Leos Carax, mescla vários gêneros para projetar as fantasias e frustrações do homem do Terceiro Milênio
Publicado 19/12/2012 12:09
No universo da arte, as criações estão conectadas umas às outras, tanto que ao assisti-las o espectador pode ter a impressão de estar num filme vendo o outro. Tal é a sensação que se tem neste “Holly Motors”. Os mecanismos sagrados vão se abrindo ao longo da narrativa, como uma caixa de mágica russa, cheia dos enigmas e símbolos de “Império dos Sonhos”. David Lynch mistura espaços e épocas, pinturas e instalações, aparentemente desconectadas. A atmosfera é onírica, de sonhos, em que o lúdico predomina. O cineasta francês Leos Carax (“Os Amantes da Ponte Nova”) faz o mesmo em sua inventiva obra, matizada em vários gêneros cinematográficos.
“Holly Motors” é sobre fantasias de pessoas que se projetam em outras para realizá-las. Algumas de grandeza, de reconciliação, de autorrealização, de lembranças, de retorno ao passado como forma de exorcizar seus fantasmas. O símbolo a conectá-los é a limusine branca, gigantesca, que percorre uma Paris sombria, vetusta, mergulhada no caos. Uma metáfora para a decadência européia, cuja crise engendrada pelo neoliberalismo prolonga-se sem solução. Enquanto os megarricos preservam sua riqueza e seu poder à custa da miséria da classe média e do proletariado (sim, eles continuam a existir embora a grande mídia e a burguesia os ignorem).
A limusine, aliás, é usada pelos megarricos para se isolar da massa. É o símbolo maior da apropriação do trabalho e da manipulação de moedas e da jogatina financeira. Em “Cosmopólis”, de David Cronenberg, ela é o bunker das manobras especulativas de Eric Parker (Robert Pattinson) e ao mesmo tempo o castelo, espécie de caverna do demiurgo, onde ele se protege dos militantes do Movimento Ocupe e dos que dele querem vingar. Carax prefere mostrá-la como o veículo destinado às fantasias megalômanas de Monsieur Oscar (Denis Lavant), cuja realidade, quando revelada, reflete suas esquisitices e ambições.
Viagem de Oscar é um programa
Em sua perambulação por uma Paris de fim de civilização, ele vai, aos poucos, cumprindo o programa, sempre lembrado pela fiel Céline (Edith Scob), a motorista da limusine. Há suposta amizade entre eles, que não passa, como se verá, da relação cliente/prestador de serviço. A cada etapa, ela lhe avisa da próxima sem interferir nas situações vividas por Oscar. Ele encarna papéis, qual um ator num múltiplo espetáculo, em que interpreta diversos personagens. Na realidade, ele se projeta no entrecho/esquete, saindo dele incólume.
Pode, por exemplo, liquidar banqueiros numa projeção de milhões de vitimas deles planeta afora, participar de uma reunião de acionistas ou, simplesmente, se transformar num mendigo. São nestes entrechos que o filme conecta-se ao real, enfrentado por milhões de desempregados da União Européia. Eles estão nas ruas desenganados e Monsieur Oscar é seu herói. Mas Carax o faz mergulhar nas ansiadas danças embaladas pelo tecno, ondulando o corpo fluorescente no palco. E Oscar sempre ressurge, espreitando o público dos bastidores, numa dualidade palco/rua/alegoria.
É emblemático a Modelo Desejada (Eva Mendes) perambular com Oscar/mendigo pelos esgotos de Paris, sem ser tocada. Ela está ali, real diante dele, mas ele apenas a olha. É a Fera adorando a Bela. O voyeurismo, a cortina da tela invisível, não lhe permite imaginá-la como mulher. É tão só o mito, o ser inatingível. Existe só para ser admirada, não para ser possuída. No entanto, ela pode ser idolatrada, seus pôsteres colados às paredes, fotos postadas em celulares, tabletes, redes sociais para ser consumida como mitossagrado. Mesmo assim é impossível ter Eva Mendes e não tê-la.
Carax passeia pelo gameshow
Em “Holly Motors” os personagens são antes arquétipos. Não reagem, não interagem com Monsieur Oscar. Nem a amante no quarto do hotel, os sócios na reunião, a filha que contra ele se insurge, a namorada da juventude, os macacos com quem convive; eles não têm vida para além dos entrechos. Estão ali para cumprir uma etapa do programa, nada mais. Em cada uma delas, talvez episódios de um super-espetáculo teatral, passeiam por vários gêneros – ficção científica, terror, drama político, musical e parodia animações (“Carros”): limusines que, num antropomorfismo enviesado, zombam das fantasias dos clientes. De real mesmo no filme, apenas Oscar e Céline.
Não apenas isto, Carax estrutura o filme em entrechos que se assemelham a episódios, tarefas a serem cumpridas, ou simplesmente fantasias dos “clientes”. Uma engenhosa e criativa apropriação dos programas de TV com suas “interativas” trocas com o telespectador, sempre em busca de emoções fugidias. As instigadas por Monsieur Oscar bem poderiam ser as de um gameshow, pago pelo cliente. Mas a convivência dele, Oscar, com os macacos como numa família, tem muito de o homem do Terceiro Milênio vivendo numa permanente instalação. Daí, a certeza de que Carax brinca com o espectador, como David Lynch em “Império dos Sonhos”. É instigante.
“Holly Motors”.
Drama. Fantasia.
França. 2012. 115 minutos.
Direção/roteiro: Leos Carax.
Elenco: Denis Lavant, Edith Scob, Kylie Minogue, Eva Mendes.