"A Bela Que Dorme”: Direito à morte
O direito de a família decidir se o ente querido em estado vegetativo deve viver ou não é o centro deste drama do cineasta italiano Marco Bellocchio
Publicado 10/07/2013 15:09
Numa sociedade que apregoa o direito do cidadão a dispor da própria vida, a discussão sobre a eutanásia soa como contrassenso. Neste emblemático “A Bela Que Dorme”, o cineasta italiano Marco Bellocchio aborda esta questão, envolvendo política, psicanálise e religião. Usa o caso real de Eluana Englaro, que aos 38 anos, após 17 anos em coma, recebe o diagnóstico de que terá vida vegetativa. A família então decide desligar os aparelhos. Bellocchio, a partir daí, introduz tramas paralelas que levam o espectador à reflexão.
No eixo central estão o Estado, a quem cabe autorizar ou não a eutanásia, e a Igreja que é contra por questões teológicas. O então primeiro-ministro Silvio Berlusconi surge na TV com posição dúbia, tentando influenciar o voto dos senadores. Na rua a sustentá-los estão bispos, padres, fiéis, beatos/as, com seus terços e rezas. A mídia trata o caso como um espetáculo, que provoca apostas sobre a decisão em bares, restaurantes, hotéis e hospitais. O que era um caso ético, moral; se torna uma gincana, sem discutir o direito da família ou do próprio cidadão à eutanásia.
O contraponto feito por Bellocchio ao esvaziamento da discussão ocorre sem a interferência da mídia, do Estado e da Igreja num quarto de hospital com Ulliano Beffardi (Toni Servillo), senador em primeiro mandato, a filha Maria (Alba Rohrwacher) e a Companheira em estado grave. Bellocchio trata-o como um caso de fórum particular, familiar, afetivo. É uma sequência fria, com três personagens, depois reduzidos a dois num instante de decisão que só a eles cabe. E representa, sobretudo, uma atitude polêmica: a de que o sofrimento deve ser aliviado, embora a sociedade hesite em tomá-la.
Bellocchio não se omite
É nas sequências com Ulliano que Bellocchio mostra sua indignação com o sistema político italiano, seus conchavos e jogos de interesses. Ele se detém nos movimentos de Ulliano e de Luigi, velho senador, mais interessado em preservar o mandato e a imagem perante a mídia. Ex-membro do Partido Socialista, Luigi ainda se diz socialista para ludibriar seus eleitores. Ele irá chamar atenção para o apoio que Ulliano deve dar ao Vaticano para manter sua carreira política e seu espaço na mídia. Ulliano, pouco afeito a conchavos, decide seguir apenas à sua consciência, para espanto de Luigi, que a negligência.
Bellocchio consegue, a um só tempo, mostrar a influência do Vaticano na política italiana e o papel da mídia a sustentá-lo. Interferência não diferente do Brasil, salvo que aqui a mídia burguesa destituiu os intermediários, ditando ela mesma as regras, agenda e as posições dos líderes conservadores, ainda neoliberais, por mais que isto pareça obsoleto. Às vezes, como ocorreu nas recentes manifestações micropolíticas, as massas escapam a seu controle e a inclui em seus alvos. Caso do cartaz: “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”, um remake da palavra de ordem do Movimento pelas Diretas, de 1984.
Não menos significativa é a terceira subtrama, em que a Atriz (Isabelle Huppert) alterna-se entre a reza e a vigília para manter a filha Rosa “viva”, entrando em conflito com o filho Frederico (Breno Placido) e o companheiro, também ator. Vê-se aqui clima semelhante a “De Punhos Cerrados” (1965), no qual o filho vive atormentado e em disputa com os irmãos. Em “A Bela Que Dorme”, Frederico clama pela atenção da mãe e luta para livrar-se da irmã em estado vegetativo. É uma família burguesa, cujos valores cristãos vinculam-se mais à busca de apoio em seu instante de dor, que pela fé em si.
Direito ao suicídio
A mais significativa das subtramas traçadas por Bellocchio é a da Jovem Viciada em Drogas (Maya Sansa) que, internada no hospital, luta pelo direito ao suicídio. Seu contraponto é o médico Pallido (Pier Giorgio Bellocchio), que insiste em tirá-la das drogas. A discussão entre eles sobre as razões dela para pular a janela e dele evitá-lo suscita reflexões. Ela diz que já tentou tudo, os braços estão cheios de cicatrizes, não quer mais viver, ao que ele responde: Estou aqui para evitá-lo. É um tout force digno não do papel do médico, mas do ser humano que vê no outro o direito a viver, ainda que não queira. A sequência em que ela volta à janela, com ele dormindo a redime: ela vai, abre-a, começa a subir e retorna.
O que resta, ao final deste “A Bela Que Dorme” é a capacidade de o cinema ser arte e divertir pela beleza dos enquadramentos, os ambientes onde a ação se desenvolve e a iluminação que no diálogo de Ulliano e o Psiquiatra se presta a elucidar as intenções de ambos, criando um clima de perturbação e doença. E o psiquiatra diz ao senador: “Os políticos também precisam de psiquiatra”. Ulliano, que se desloca de trem do interior para Roma, numa demonstração de respeito ao cidadão, quer contestá-lo e termina por concordar. Nestes tempos em que a imagem vale mais que o conteúdo, Bellocchio, sem dúvida, tem razão.
“A Bela Que Dorme”, (“Bella Addormentata”).
Drama. França/Itália.
2012. 116 minutos.
Música :Carlo Crivella.
Fotografia: Daniele Ciprí.
Argumento: Marco Bellocchio.
Roteiro: Marco Bellocchio, Veronica Raimo, Stefano Rulli.
Direção: Marco Bellocchio.
Elenco: Isabelle Huppert, Alba Rohrwacher, Toni Servillo, Maya Sansa, Pier Giorgio Bellocchio.